Sarah 31/01/2021Um inventário de afetos familiaresEm "Léxico Familiar", a escritora Natalia Ginzburg, um dos principais nomes da literatura moderna da Itália, se propõe a tarefa de, por meio de expressões usadas dentro do lar onde cresceu, fazer um inventário de suas memórias familiares - um relicário de seus afetos.
No livro, que me lembrou muito "Anarquistas Graças a Deus", de Zélia Gattai, Natalia nos leva aos poucos para dentro do universo de uma família judia de alta classe na Itália do começo do século passado até o período do pós-guerra.
No prefácio o escritor chileno Alejandro Zambra já nos alerta que é muito difícil o leitor não se identificar, trocando apenas algumas palavras e casos da própria família. Afinal, esse sentimento de pertencimento a uma comunidade com seus ritos e falas próprias é quase universal. Somos quem somos como consequência daquilo que vivemos, mas nem todos tem o talento da autora para colocar isso em palavras.
"A enorme originalidade desta obra reside em sua tremenda simplicidade. Qualquer um, a partir do exercício de recordar as frases em sua própria família, poderia escrever um livro como este", conclui Zambra.
Preciso admitir que meu amor pelo livro não foi a primeira vista. Não foi arrebatador. Foi aos poucos. Demorou para eu entender a escrita de Natalia. Muito distante da minha realidade, ela não dá explicações muito efusivas sobre nomes e lugares - isso tudo você encontra em um glossário ao fim do livro, informação que descobri tarde demais.
O jornal britânico "The Guardian" explica melhor, segundo o periódico, a escrita de Natalia sempre foi diferente. É fria ao expor falsos sentimentalismos enquanto é calorosamente atenta aos detalhes da vida em família.
Ela não floreia a história. Ela alerta já na primeira página: "lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada: e toda vez que, nas pegadas do meu velho costume de romancista, inventava, logo me sentia impelida a destruir tudo que inventara".
É interessante, no entanto, perceber o tom idílico que permeia o livro até sua metade, quando Natalia ainda é criança. São lembranças de passeios nas montanhas, da avó, dos parentes de Florença, do nascimento da protagonista em Palermo. Apesar de escrever esse livro já adulta, nesse momento a narradora volta a ter um tom infantil.
Mas, aos poucos, essas memórias vão se enchendo de referências ao fascismo, discussões políticas e prisões. Dessa forma, o livro pode ser separado em duas partes, o antes e o depois da ascensão de Mussolini ao Poder e da II Guerra Mundial. Aqueles que sobreviveram não são os mesmos. A família não é a mesma. Ninguém sai ileso desses anos de conflito.
Nessa parte, "Léxico Familiar" me lembrou outra obra literária brasileira, "Éramos Seis", de José Maria Dupré, que aos poucos vai tomando um tom melancólico quando os irmãos se dispersam e cada toma seu rumo.
Outro ponto de destaque é a forma comovente como Natalia descreve a Itália no período do pós-guerra. Uma euforia seguida de um sentimento quase de vazio.
Ela, no entanto, quase sempre se coloca como observadora e poucas vezes protagoniza alguma das historietas narradas. Parece que ela evitou ao máximo entrar naquelas páginas. Mesmos fatos trágicos de sua trajetória parecem ser minimizados.
Como jornalista e muita apegada aos fatos que sou, senti falta de mais informações de algumas pessoas que passam pelas páginas. Beppino, o pai da protagonista, por exemplo, não é ninguém menos do que Giuseppe Levi, grande biólogo italiano que lecionou três ganhadores do Prêmio Nobel.
Em contrapartida penso que isso poderia destoar do tom do livro. Natalia era filha de Beppino, seria irreal e pouco provável que ela falasse em termos de admiração por sua ilustre carreira acadêmica. O mesmo se dá para amigos de seus genitores. Apesar de serem nomes famosos da história política italiana, eram recebidos em seu lar como colegas.
Considerada uma das principais escritoras da literatura moderna italiana, Natalia tem, de forma bastante tardia, ganhado fama mundialmente de carona na "febre ferrante".
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