Antonio Luiz 03/07/2010
Ficção política e científica
Na literatura brasileira de ficção científica recente, a reflexão sobre o poder político e religioso frequentemente está presente, mas raramente tem um papel tão central quanto no romance "Guerra Justa", de Carlos Orsi, escritor e jornalista.
A trama alterna movimentadas cenas cinematográficas com diálogos e explicações que servem principalmente a dar informação sobre a realidade do século 22, quando uma nova religião, a “Quinta Revelação”, manipula a humanidade por meio de um uso sofisticado de softwares e programação neural. O equilíbrio entre ação e reflexão é bom e o ator soube resistir tanto à tentação de despejar informação desnecessária ao entendimento da trama quanto à de complicar a história com acontecimentos que não fazem avançar o argumento. O leitor não ficará confuso com movimentos que não levam a nada, nem entediado por excesso de informação.
Um ponto fraco é o caráter esquemático dos personagens. Há muitos e o ponto de vista salta muito rapidamente de um para outro, sem dar oportunidade para que mostrem diferentes facetas. A cientista Rafaela dá a impressão de ser uma protagonista nos primeiros capítulos, mas a narrativa logo se afasta dela para só retornar perto do final, depois que ela sofreu uma transformação radical que não acompanhamos. Os personagens não são tratados como individualidades únicas, mas como tipos sociais ou ferramentas para avançar a história e expor ideias. Nada sabemos sobre eles além do essencial para sua função.
É ruim para o leitor interessado na interioridade dos personagens ou em busca de heróis para os quais torcer e desperdiça a oportunidade de explorar o mundo ficcional de um ponto de vista mais subjetivo. Mas não é um pecado mortal na literatura especulativa. Muitas obras de fantasia e ficção científica – as de H. G. Wells, por exemplo – se sustentam bem como romances de ideias e este é claramente deve ser julgado por este viés e não o do desenvolvimento dos personagens. Mas de que ideias se trata aqui?
Tentarei resumir o argumento sem revelar mais que o indispensável para a discussão. O poder da Quinta Revelação baseia-se na capacidade do Pontífice, instalado em uma estação orbital com seus acólitos mais próximos, de prever o futuro com detalhes, que ocupou o espaço vago deixado pela “orfandade espiritual” da humanidade ao ver Meca, Jerusalém e Roma destruídas pela queda de um cometa escuro em certo momento do século 21, a primeira previsão bem-sucedida do novo profeta.A trama gira em torno de uma conspiração contra o poder excessivo da nova Igreja, que permite ou recusa tratamentos médicos segundo sua interpretação da vontade divina, monitora todos os indivíduos por meio de “mediadores”, uma combinação de celular e computador que todos carregam na forma de implantes na cabeça.
Para driblar tanto a vigilância da Igreja quanto sua capacidade de prever o futuro, os conspiradores se baseiam na aleatoriedade. Suas decisões sobre o que vestir, que rota seguir e que ações priorizar são tomadas com lances de dados, para que o poder profético da Igreja não seja capaz de identificar seus padrões de comportamento. Como logo fica claro, o capacidade da Igreja de prever o futuro com precisão – incluindo, por exemplo, o número exato de vítimas de um furacão no Texas – não vem de inspiração divina, mas de um complexo programa de simulação que os conspiradores se esforçam por reproduzir e superar.
À primeira vista, trata-se de um romance cyberpunk: softwares, computadores, programadores, inteligências artificiais e hackers são os instrumentos do poder e dos que o combatem. Mas não se vê, aqui, o tratamento característico da política na versão anglo-saxônica do gênero inaugurado por William Gibson e Bruce Sterling. O cyberpunk clássico envolve fragmentação política, hegemonia do dinheiro e de grandes empresas transnacionais, esvaziamento do Estado e personagens politicamente alienados, sem nenhuma visão crítica ou global das questões que os envolvem e das forças que os usam, preocupados apenas com seus projetos pessoais, se não apenas com sua sobrevivência imediata.
Pelo contrário, vê-se aqui uma teocracia mundial em relação à qual os governos nacionais se portam como agências policiais e executivas locais. Os personagens principais são ativistas politicamente conscientes que são obrigados pela própria natureza da situação a pensar a totalidade: tanto manter quanto tomar o poder dependem de programas capazes de processar e interpretar a realidade social nos mínimos detalhes.
Mais visível é a influência da concepção do totalitarismo em George Orwell. Trata-se, também neste romance, de falsificação da realidade e controle das consciências por um poder absoluto e um personagem-chave é uma cientista que, como o Winston Smith de 1984, acredita no sistema e participa do trabalho de manipulação até ser cooptada por uma organização que combate o poder da versão cibernética e espacial do Grande Irmão. Mas a sofisticação tecnológica é muito superior: enquanto Winston se limitava a eliminar e reescrever documentos oficiais, Rafaela estuda a manipulação do cérebro humano por meio de softwares. E o poder não reside, desta vez, em um Partido todo-poderoso e sim numa Igreja. Mostra ser uma obra posterior ao 11 de setembro, quando o espectro do fundamentalismo teocrático – muçulmano ou evangélico neoconservador – fez esquecer o do totalitarismo político.
Uma influência menos óbvia, mas ainda mais importante é a de Isaac Asimov, que na série Fundação imaginou a psico-história, ciência por meio da qual seria possível prever com exatidão o desenvolvimento da história da humanidade e manipular seus rumos e em muitas histórias escreveu sobre inteligências artificiais que eventualmente superariam as humanas e acabariam por governá-las para seu próprio bem. Também estes temas estão presentes.
Combina-se um cenário tecnológico cyberpunk, típico da ficção científica dos anos 80 e 90, com especulações políticas mais típicas dos anos 50, embora reanimadas pelo contexto do ressurgimento do fundamentalismo dos anos 2000. A combinação funciona, do ponto de vista da coerência interna do romance, mas deixa uma certa sensação de anacronismo.
A ideologia da moda da idade de ouro do cyberpunk era o neoliberalismo, que o gênero frequentemente radicalizava em um anarco-capitalismo libertarian. O clima era de extremo caos informatizado dos mercados, das empresas e dos egoísmos individualistas, não de ordem extrema. Mas não é só questão de infidelidade às raízes do gênero: é que o romance e suas ideias sobre controle, governo e conhecimento parecem desprezar a teoria do caos, apesar de tudo de tantos livros de ficção e popularização científica a terem discutido desde 1972, quando Philip Merilees perguntou se o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear um tornado no Texas.
Desde o alvorecer da ciência moderna, teorias e máquinas nos acostumaram a pensar que prever (e controlar) o futuro é possível se tivermos informação suficiente, teorias adequadas e tempo suficiente (ou computadores suficientes) para processá-la, mas a matemática tem demonstrado que não é bem assim.
Alguns sistemas são de fato deterministas: dada informação correta e suficiente sobre seu estado, é possível prever sua evolução. Pequenos erros ou incertezas sobre a informação resultam apenas em pequenos desvios da predição, que podem ser facilmente corrigidos e calibrados. Naturalmente, a maior parte dos esforços da ciência, da engenharia e da teoria clássica da organização são dirigidos a descobrir e criar sistemas que sejam de fato deterministas, passíveis de predição e controle.
Mas muitos fenômenos decisivos para a natureza e a sociedade dependem irremediavelmente de sistemas caóticos, nos quais o desenvolvimento dos acontecimentos é radicalmente alterado por pequenas diferenças nas condições iniciais, como a borboleta brasileira da metáfora. A margem de incerteza quanto aos dados iniciais – inevitável, até porque as medições, em última análise, estarão sujeitas à indeterminação quântica – basta para garantir que os acontecimentos rapidamente divergirão das predições teóricas. Não importa quão rica seja a informação, quão exatas sejam as teorias e quão sofisticados sejam os computadores: tudo isso, no máximo, amplia um pouco o âmbito das previsões confiáveis, com retornos rapidamente decrescentes em relação ao investimento. E o tamanho do sistema ou da sociedade não a torna mais previsível, ao contrário do que Asimov pensava. Assim como a meteorologia mundial é mais caótica e imprevisível que a de um quarto fechado, os mercados mundiais abertos provaram-se mais caóticos e incontroláveis que mercados nacionais relativamente isolados.
O romance Guerra Justa tem por epígrafe uma citação do Marquês de Laplace, de 1796: “Afastemo-nos da perigosa máxima de que às vezes é útil enganar, fraudar e escravizar a humanidade, para fazê-la feliz”.
Mas há outra passagem de Laplace que, sem ter sido lembrada, é igualmente importante para o livro: “Um intelecto que, em dado momento, conhecesse todas as forças que dirigem a natureza e todas as posições de todos os itens dos quais a natureza é composta, se este intelecto também fosse vasto o suficiente para analisar essas informações, compreenderia numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do menor átomo; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, seria presente perante seus olhos” – é a negação do livre arbítrio e da indeterminação e talvez não seja apenas por acaso que tenha sido escrita em 1814, depois que o caos e as possibilidades aparentemente ilimitadas abertas pela Revolução Francesa de 1789 haviam sido recapturadas pelo autoritarismo napoleônico e, logo em seguida, pela restauração da monarquia.
Tanto o vilão quanto os heróis de Guerra Justa querem ser demônios de Laplace, esses impossíveis intelectos teoricamente oniscientes. O curioso é que Orsi, sendo um jornalista especializado em temas científicos, não pode ignorar as descobertas que desde 1814 refutaram as suposições do Marquês – não só a entropia, a teoria do Caos e a mecânica quântica, como também as demonstrações teóricas dos limites da computação.
Daí a sensação de anacronismo: é como se o romance quisesse esquecer tudo isso. Voltar a um tempo no qual a vida e a história pareciam mais previsíveis e o progresso parecia suficientemente determinístico e regular para que nos fosse possível prever para onde nos levava. Expressa nostalgia, se não do positivismo vitoriano, ao menos do clima da Golden Age da ficção científica dos anos 30 aos 50 (anglo-saxônica ou soviética: nesse aspecto tinham muito em comum) que, em geral, apontava para um futuro ideal de crescente conhecimento e controle da natureza, educação científica e racional, prosperidade crescente, conquista do espaço e tecnocracias sábias e benevolentes, livres de conflitos e de movimentos políticos imprevisíveis.
Por sinal, quando a cientista sugere paralisar o sistema da Igreja e dizer a verdade às massas, a liderança da conspiração recusa: “rodamos essa simulação e o resultado é aterrador. Algumas pessoas perderiam totalmente a confiança em leis e governos, outras abraçariam fanaticamente o dever de morrer e matar pela fé. Seria o início de uma onda incontrolável de revoluções e contra-revoluções, guerras santas e progroms”. A conspiração concorda com a Igreja no essencial: esses primatas não são capazes de se governar, o despotismo é necessário. Apenas pretendem que seja benévolo e esclarecido, que não inflija sofrimentos inúteis, que seja compassivo e não mesquinho e ciumento. Querem mudar o sistema “devagar e com cautela” – quase literalmente repetindo o “lenta, segura e gradual” de Golbery do Couto e Silva.
A sugestão de distopia da maior parte do romance é enganosa: no fim das contas, o assunto é a utopia. Não é uma advertência contra os riscos de possíveis desenvolvimentos políticos ou tecnológicos, como o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley ou Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, mas uma história na qual a Ordem e o Progresso escrevem direito por linhas tortas. Uma utopia conservadora, pois não esconde a desconfiança em relação à democracia e seus inevitáveis conflitos de interesses, depende do despotismo esclarecido de inteligências naturais ou artificiais e acredita na capacidade destas de definir o bem comum para todos, mas ainda assim é uma utopia.
É uma obra interessante ao menos por repor essa discussão, mesmo se a proposta implícita é bastante questionável. Como gostava de escrever o jornalista estadunidense H. L. Mencken, para todo problema complexo há uma solução simples, clara e errada. Em um tema no qual a complexidade está no próprio cerne, o romance desemboca em uma saída, no fim das contas, nostálgica e impossivelmente simplista. Não há como prever o futuro de um sistema intrinsecamente não-determinista, nem uma medida objetiva do bem.
O romance também se mostra simplista no tratamento da religião. Assim como certos fundamentalistas religiosos, veem na teoria da evolução uma conspiração diabólica para ocultar a criação e a verdade literal da Bíblia, o livro parece ver a religião como uma invenção arbitrária de líderes cínicos para explorar as massas e fazê-las sofrer. Subestima a amplitude e profundidade das raízes do fenômeno, como se vê na própria premissa da história, na qual as religiões atuais são facilmente varridas por um desastre natural. É como se vivesse do arbítrio das lideranças e não da capacidade de tornar suportáveis as ansiedades e os sofrimentos inevitáveis (seja com compensações imaginárias ou metafísicas, seja com assistência social real), fossem todas rigidamente centralizadas (quase só a Igreja Católica segue esse modelo) e o mundo inteiro girasse em torno de Meca, Jerusalém e Roma, quando bilhões de hindus, budistas e outros seguem tradições independentes. No romance, até a China, onde as chamadas religiões abraâmicas nunca tiveram importância, se submete à “Revelação” do suposto sucessor de Moisés, Jesus e Maomé.
A ecologia também tem um tratamento um tanto superficial. Diz-se que o mundo atingiu uma população de dez bilhões e o clima foi alterado, mas não se veem efeitos disso. Pelo contrário, cenas importantes se dão em cenários de natureza aparentemente intocada – inclusive em um atol do Pacífico que deveria ter sido um dos primeiros a ser submerso pelo aquecimento global.
Insista-se, porém, em que a obra tem o mérito de ter compreendido que a ficção não é apenas fuga da realidade ou passatempo, mas também uma maneira de especular com todos os aspectos da vida e principalmente os mais sérios, como o amor, a morte, a religião e a política. Hollywood nunca hesitou em, bem ou mal, tratar de questões políticas até nas produções mais comerciais – Avatar é um manifesto ecologista, Distrito 9 fala de racismo e migração, Star Trek defendeu valores da esquerda liberal e Star Wars os de um conservadorismo messiânico. Só autores muito ingênuos acreditam em produzir “puro entretenimento”. Carlos Orsi, com certeza, não é um deles.