Oibaf 03/08/2020
O ser social da roupa e sua coisificação
Comprei esta nova edição acidentalmente, isso porque não encontrava em casa a edição anterior que eu já tinha lido a muitos anos. Qual não foi minha surpresa quando minha mãe me informa que o livro estava com ela. Não há mais volta, tive contato com está edição mais recente, e apesar de adorar o projeto gráfico da edição anterior, e ter achado um pouco incomodo a capa dura desta nova edição, esta tem lá seu charme gráfico.
Nessa minha segunda leitura, não pude deixar de ter novas pontes de contato com a obra, e embora hoje eu não me entusiasme tanto com a abordagem do autor, um tanto voltado exclusivamente para um ponto de vista focado no sujeito particular, a obra me trouxe novas sugestões de abordagem de temas que muito me interessam. Não que as particularidades de indivíduo nos seja algo secundário, mas permeia na obra uma abertura a ver na interação socio-emocional da roupa com seu consumidor uma relação fetichisada, onde uma "memória material" do objeto se converte em valor afetivo. É claro esse valor afetivo é real, mas há uma tendência entre os estudiosos da moda em converter o valor afetivo verdadeiro em símbolos de afetividade pelo consumo, e assim na faculdade de moda somos incentivados a aprender que o tecido tem uma história, que as marcas de gasto no jeans são valores adquiridos. E tudo isso é uma completa alienação, que apresenta coisas sobre a forma humanizada enquanto ignora que o mercado de trabalho da indústria da moda é sustentado por uma lógica de pessoas coizificadas.
Pois bem, levantado meu descontentamento, nem tanto com o autor mas principalmente com o ensino acadêmico da moda, vamos ao que me chamou a atenção na obra. Um fato que acaba sendo deixado de lado na obra, principalmente quando ela acaba se tornando exclusivamente bibliografia de estudantes de moda e vestuário, é o próprio interesse acadêmico do autor, vindo da crítica literária. Quando eu penso na finalidade do autor, de esgotar as possibilidades de abordagem de como a literatura descreve o ser social, partindo de um dos fios possíveis de abordagem, que no caso é a roupa, passei a ter mais paixão e vontade de retornar a um tema de pesquisa que abandonei a pouquíssimo tempo.
No caso, o tema era sobre a obra da filosofa brasileira e crítica de estética da arte Gilda de Mello e Souza. Em um de seus livros mais famosos, O Espírito e as Roupas, a autora trabalha com uma chave de leitura, muito inspirada pelo sociólogo neo-kantiano Georg Simmel, de uma relação social entre a função social da indumentária na leitura das relações ideias entre indivíduos. Ou seja, uma vez que as relações entre os seres se dá pela consciência, até que ponto a indumentária, do século XIX no caso da obra, é um referência material confiável de se interpretar a sociedade. Assim como György Lukács, que foi aluno orientando de Simmel, Gilda prefere ler a sociedade do século XIX pelo seu recorte de classe, portanto, sendo o capítulo sobre luta de classes pela indumentária talvez a pérola central do clássico livro de Gilda Mello e Souza. Lukacs, embora nunca tenha se dirigido diretamente a moda em si, teve em sua formação uma ruptura com Simmel ao migrar a sua obra de maturidade, se tornando sem dúvida o filósofo mais importante do século XX. Antônio Candido, sociólogo brasileiro companheiro intelectual de Gilda de Mello e Souza, com quem compartilhou não apenas os estudos, como também alguns anos de casamento, redendo inclusive filhos, dedicou sua vida ao estudo da leitura sociológica da literatura brasileira, partindo muitas vezes das análises que Lukacs desenvolveu sobre a coisificação das relações humanas, a famosa teoria da reificação.
Quais não seriam as inúmeras possibilidades de estudo da literatura brasileira se, partindo do que Peter Stallybar faz ao analisar obra literária pela relação narrativa da roupa, não nos orienta-se-mos em combinar os estudo acadêmicos de dois dos maiores nomes da teoria crítica brasileira, analisando as hipóteses formuladas por Antônio Candido sobre as principais obras primas da literatura brasileira com a chave de leitura sociológica de Gilda de Mello e Souza. Para além de um reencontro na teoria desse finado casal, seria uma positiva consciliação na teoria entre Lukacs e seu antigo orientador de mestrado Simmel, sem cair nas contradições simmelianas é claro.