Beatriz 15/05/2020CitaçõesTodos os primeiros passos foram dados por ele. Eu não me sinto forçada e sei que tenho o poder de dizer não, mas isso não é o mesmo que estar no controle.
Imagino que eu vou ser a pessoa a quem ele vai recorrer daqui a dez
ou quinze anos, na hora em que seu corpo começar a falhar. Este parece o
fim provável dessa história de amor: eu largando tudo e fazendo qualquer
coisa, tão dedicada quanto um cão, enquanto ele recebe, recebe, recebe.
Quando ele começa a falar desse jeito, meu cérebro não consegue
acompanhar. Parece que ele está exagerando, mas fico soterrada pelo
que diz e perco a noção daquilo em que acredito. Ele pode fazer até
mesmo as coisas mais absurdas parecerem factíveis.
De volta ao meu quarto, deito-me de bruços na cama e fi co respirando no travesseiro para me acalmar e aplacar o ódio que sinto dele. Porque no momento é esta a minha sensação: de que eu o odeio. Sério, eu odeio quando ele fica bravo comigo, porque é nessa hora que sinto coisas que provavelmente não deveria: vergonha e medo, uma voz me dizendo para correr.
Não é justo, diz ele, que eu seja forçada a fazer isso, mas limpar o nome dele é o único jeito de ele sair dessa com vida.(?) A gratidão irradia dele para dentro de mim e me enche de amor. É isso que significa ser altruísta, penso, ser boa. Como algum dia já me considerei impotente se só eu tenho o poder de salvá-lo?
Então penso nele insistindo que quem está no comando sou eu e que ele
não liga para os casos inexistentes que eu tive antes dele. São coisas nas
quais ele precisa acreditar para suportar a si mesmo, e seria cruel se eu
as rotulasse como mentiras.
?Quanta força é preciso para machucar uma menina pequena? Quanta força é preciso para a menina superar? Qual dos dois você acha que é mais forte??
Você me chamou de ?perturbada? naquela carta. Não foi? Como se eu fosse maluca. Uma menininha idiota. Entendo por que fez isso. Era um jeito fácil de se proteger, não é? Adolescentes são malucas. Todo mundo sabe disso.
? Não dizem que isso compensa todo o estresse? É o que as pessoas vivem dizendo, que é preciso falar custe o que custar.
? Não ? diz ela com firmeza. ? Isso está errado. É uma pressão perigosa de se impor a alguém que está lidando com um trauma.
(?)
? Estou me sentindo encurralada ? respondo. ? Como se de repente o fato de não querer me expor significasse que estou facilitando a vida dos estupradores. E eu não devia nem fazer parte dessa conversa!
É que eu sinto? Não posso soltar o que estou segurando há tanto tempo. Você entende? (?) Eu simplesmente preciso muito que seja uma história de amor. Você entende?Preciso muito, muito que seja isso. (?) Porque se não for uma história de amor, então o que é? (?) É a minha vida, Isso tem sido a minha vida inteira.
Minhas opções: atravessar sete anos desse pântano
e me colocar à mercê de uma terceira pessoa cética que talvez nem acredite em mim ou abrir a porta e torcer para não ser tão ruim assim.
Acho que é esse o custo de contar, mesmo disfarçado de ficção: depois que você conta, é a única coisa a seu respeito com que qualquer pessoa vai se importar. Isso define você, quer queira, quer não.
Acho que é esse o custo de contar, mesmo disfarçado de ficção: depois que você conta, é a única coisa a seu respeito com que qualquer pessoa vai se importar. Isso define você, quer queira, quer não.
Tudo isso parece uma farsa, porque eu vi como as coisas acontecem, vi a rapidez com que as pessoas jogam as mãos para o alto e dizem Às vezes acontece, ou Mesmo que ele tenha feito alguma coisa, não pode ter sido tão ruim assim, ou O que nós poderíamos ter feito para impedir? As desculpas que inventamos para os outros são absurdas, mas não são nada em comparação com as que criamos para nós mesmos.
Não lhe digo outra vez que ela não poderia ter impedido o que aconteceu, que a culpa não foi sua e que ela não merecia aquilo. Em vez disso, engulo essas palavras. Quem sabe em algum lugar dentro da minha barriga elas criem raízes e cresçam.
Imagino Strane ali no quarto, em como ele a acalmaria. Não é nada, diria ele, a voz tranquila como um bálsamo. A senhora não viu o que pensou ter visto. Ele poderia convencê-la de qualquer coisa, igualzinho faz comigo. Iria guiá-la até a
cadeira da escrivaninha e preparar uma xícara de chá para ela. Enfiaria
a foto no bolso, um movimento tão sutil e rápido que ela nem perceberia.