Giro Letra 04/06/2011
Chiquinha Gonzaga: uma história de vida
"Pois, senhor meu marido, eu não entendo a vida sem harmonia"
Há algum tempo, li um livro maravilhoso: Chiquinha Gonzaga: uma história de vida. Trata-se da biografia da primeira maestrina brasileira, Francisca Edwiges Neves Gonzaga, ou, simplemente, Chiquinha Gonzaga. O livro foi escrito por Edinha Diniz, baiana que, a partir de 1977, começou uma extensa pesquisa sobre esta mulher tão singular que foi Chiquinha Gonzaga. A pesquisa foi realizada em três diferentes lugares, Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa, e resultou na publicação desse livro, que é mais do que uma simples biografia. Ele representa um estudo da vida e obra da maestrina e compositora, tendo como plano de fundo a história do Rio de Janeiro do século XIX vista da perspectiva do homem comum, das baixas camadas sociais. Por isso mesmo, representa, para nós, leitores, uma viagem pela vida de Chiquinha Gonzaga, lembrada mais constantemente pela autoria da marcinha "Ó abre alas", e também pela história do Rio de Janeiro, mais especificamente da Música Popular Brasileira.
Chiquinha Gonzaga (1847 - 1935) era mestiça, filha de mãe negra e pai branco. Nasceu numa época em que esse tipo de relação (homem branco e mulher negra) era repudiada. Com Chiquinha, porém, isso foi diferente. O seu pai, general José Basileu Gonzaga casou-se discretamente com dona Rosa e, dessa forma, Francisca teve acesso à melhor educação da época, que incluía, além de leitura e estudo de outros idiomas, música. Daí, desde a infância, ela demonstrou uma incrível facilidade e uma verdadeira paixão pelo piano e pela música em geral. Como costume da época, teve seu casamento planejado pelo pai, que escolheu, para esposo da filha, o jovem Jacinto Ribeiro do Amaral, o qual é, irrevogavelmente, contra o "capricho" da mulher.
"Considerando a natureza de sua personalidade, a música representava um meio de manifestar e extravasar seu temperamento e manter sua vontade própria. Compreensivo, portanto, que provocasse ciúmes ao marido e chegasse mesmo a desafiá-lo. Jacinto o encarava (o piano) como um forte rival; proporcionava a sua mulher devaneio, alegria e uma forma de afirmação de sua vontade. E isso era incompatível com o comportamento austero, submisso e abnegado que ele lhe exigia."
Dessa forma, Chiquinha viveu constantes conflitos na sua relação conjugal. O marido, querendo fazer valer seus direitos de patriarca e marido a quem a mulher deve total submissão, teve um último artifício para manter a mulher debaixo de suas ordens: resolveu levar Chiquinha em suas viagens realizadas com o navio São Paulo, no qual carregavam-se escravos "voluntários" da pátria para combater na Guerra do Paraguai. Depois de diversas viagens em que ela era tão ou mais escrava que os negros transportados pelo navio, o marido a mandou escolher entre a música e ele. Depois da escolha tomada, ela abandonaou o marido sem receber o apoio da família, mas foi obrigada a voltar depois de descobrir que estava pela terceira vez grávida (o primeiro filho, João Gualberto, nascera pouco depois do início do casamento e sempre a acompanhava nessas viagens, a segunda, Maria, recém-nascida, encontrava-se com a avó, dona Rosa). Descobrindo-se grávida, Chiquinha se vê obrigada a retornar à convivência com o marido, mas, mesmo o nascimento do terceiro filho, Hilário, não mudou em nada sua relação com o marido, de modo que ela decide mais uma vez se separar dele. Sai de sua casa apenas na compainha de seu primogênito, deixando Maria aos cuidados dos avós e Hilário fica sob a responsabilidade de uma tia-avó paterna.
A partir daí, ela começou sua carreira musical, rodeada de escassez de todo o gênero, uma vez que a atitude tomada por ela não era aceitável na época. Sua primeira música foi a polca Atraente, que data de aproximadamente 1876. Esta foi ao mesmo tempo muito bem recebida por uns, pela sua qualidade e pioneirismo, e muito criticada por outros, que diziam ser uma polca muito provacativa (pois o título, segundo diziam, fazia referência aos atributos físicos da compositora, fato totalmente impróprio na época).
A partir daí, suas composições não pararam. E Chiquinha Gonzaga teve que se dividir entre sobreviver de um trabalho ainda não aceitável para as mulheres, desenvolver novas habilidades, criar seu filho e viver novos amores.
Essa história de vida, bem como toda a evolução da MPB e cultura do Rio de Janeiro são contadas de maneira contagiante, resultado de uma ampla pesquisa. A pessoa que lê esse livro e conhece a história dessa tão fantástica mulher é incapaz de não se tornar admiradora dela, Chiquinha Gonzaga, que se tornou um exemplo impressionante de determinação e superação de barreiras.
Patrícia Tavares