jota 15/08/2012Biografia pelo avessoNão tem jeito: J. M. Coetzee vicia - li as 50 páginas iniciais de Verão de uma tacada só. Se Infância e Juventude prendem demais a atenção, claro que não podia ser diferente com o último volume da trilogia.
Mas este livro tem algo a mais: John (J. M. Coetzee), Prêmio Nobel de Literatura de 2003, está morto e um jovem biógrafo inglês (Vincent) trabalha num livro sobre ele, exatamente como está na sinopse. É uma biografia ao contrário, se me entendem. Recheada de metalinguagem – prato saboroso demais para quem gosta de se alimentar com literatura de qualidade.
Através de cadernos de anotações e entrevistas com pessoas que conviveram com Coetzee, o biógrafo tenta reconstituir a vida do autor sul-africano, mesmo sem tê-lo conhecido. E temos uma ficção autobiográfica bastante divertida (mas também amarga às vezes), com Coetzee em papel duplo, de autor e personagem.
As anotações dos cadernos, as iniciais, que envolvem o período de 1972-1975 tratam, a maior parte do tempo de sua vida junto ao pai viúvo (Jack Coetzee) logo depois de seu retorno (dele, John) dos EUA. Prendem-se a coisas rotineiras e até mesmo a sua dificuldade de se relacionar com um casal que se muda para as proximidades. John revela-se apolítico, mas não deixa de mencionar a violência na África do Sul, o apartheid.
As anotações finais, mais curtas, chamadas de “fragmentos sem data” dizem respeito quase que especialmente ao pai, antes debilitado pela bebida e pelo fumo e agora por um câncer de laringe. E os cuidados de John para com ele.
As entrevistas realizadas por Vincent, o biógrafo, envolvem Julia (uma amante de Coetzee por algum tempo), Margot (uma prima sua), Adriana (uma brasileira vivendo na África do Sul na década de 1970, por quem ele teria se apaixonado), Martin (um colega acadêmico para quem John perdeu uma cátedra universitária) e Sophie (professora universitária francesa com quem lecionou e teve um caso).
Todos eles relatam a Vincent suas experiências com John. Disso sai um retrato que me pareceu bastante desfavorável ao homem e ao amante (ele ainda não era um escritor tão conhecido e premiado). E como se trata de ficção autobiográfica não importa que tudo seja verdade ou mentira ou uma mistura de ambas. Importa que o texto nos prende a atenção, nos interessa. É isso que se dá.
Embora uma certa estranheza de comportamento de John (certa dificuldade de conviver e se relacionar com outras pessoas) esteja presente em todos os relatos e pela insistência do próprio autor nesse ponto, somos levados a crer que seja mesmo verdadeira. Daí não estranhamos que sempre tem alguém perguntando se John é homossexual ("moffie", em africânder), - as mulheres especialmente - mas isso não parece proceder nem incomodá-lo, claro. Senão não teria colocado isso no livro, obviamente.
Desse modo, as confissões parecem sinceras, nem tudo parece inventado pelo talentoso escritor de ficção que Coetzee efetivamente é. E de tudo que li em Verão, a entrevista com a brasileira Adriana me pareceu a melhor parte, a mais engraçada (Coetzee se dá muito bem no papel das mulheres todas, não apenas de Adriana ou Julia). Senso de humor é o que não falta no livro. Não humor para rir, que ele é contido, mas para refletir.
Por fim, as últimas páginas estão repletas de amargura. Como a vida de certas pessoas – de verdade ou de papel.
Lido entre 13 e 15.08.2012.