Flávia Menezes 09/10/2022
AGORA ESTÁ TÃO LONGE VER, A LINHA DO HORIZONTE ME DISTRAI...
?Duma Key?, publicado em janeiro de 2008, não é apenas mais um livro do mestre Stephen King. É uma obra de arte, que não foi apenas escrita, mas pintada. Nele, King imprimiu seu lado mais reflexivo, mais poético, deixando de lado qualquer receio de parecer muito emotivo, para escrever não com a ponta dos dedos tocando uma velha máquina de escrever, ou o teclado de um notebook, mas com o coração. Em cada linha, em cada palavra, eu pude experimentar cada sentimento impresso ali, e foi exatamente por isso que eu rapidamente me conectei com essa história.
Para mim, não há outra forma de ler esse livro a não ser que seja ouvindo ?Vento no Litoral? do Legião Urbana, porque a beleza desse cenário que é a ilha de Duma Key, se mescla com perfeição à melodia e à voz de Renato Russo, e vai nos preenchendo de tal forma que quando vemos, estamos naquela praia, sentindo o sol aquecendo a nossa pele, deixando que o som das águas tocando a areia nos conduza, e acalme cada parte de nós em que ainda esteja agitada pelos acontecimentos do dia, ou qualquer outro pensamento que tente cruzar a nossa mente e nos afastar da leitura.
?Duma Key? é mais do que uma história, é um relato poético sobre amor, família, amizade, doação, humanidade, o poder da arte, mas também é sobre dor, perdas, luto, separações, erros, culpa, tristeza, depressão e pensamentos suicidas. E narrado em primeira pessoa, onde somos conduzidos pela voz do protagonista, Edgar Freemantle, existe esse tom de intimidade que nos faz sentir como se estivéssemos lendo um diário com todos os pensamentos mais profundos e poéticos de alguém que decide se mostrar sem qualquer máscara, mas com toda coragem de revelar tanto o seu lado bom, quanto seu lado mais obscuro.
Para mim, foi como acompanhar um relato terapêutico, e eu fiquei tão presa à narrativa, lendo sobre os sentimentos e tudo o que permeia o psicológico do Edgar, que essa se tornou minha leitura preferida para ler à noite. Eu me sentia na companhia de um amigo que se deitou ao meu lado na cama, e começou a me contar cada detalhe do que acontecia dentro dele. E eu realmente gosto de amizades assim, de quem não tem medo de dizer o que sente. Eu gosto de ouvir as pessoas falarem sobre tudo o que gostam, sobre suas paixões, mas ouvi-las falar sobre seus sentimentos é algo tão íntimo, que denota tanta confiança... Não tem como comparar, o quanto isso é muito mais valioso para mim do que qualquer outro tipo de conversa.
Eu sei que algumas pessoas que leram e não gostaram, ao ler essa resenha vão até se perguntar: ?Mas que livro é esse que ela leu, porque eu também li, e não vi nada disso??. E de verdade... eu não só te entendo, mas respeito quando alguém diz que esse é um livro em que o King não desenvolveu muito bem seus personagens, e que a narrativa é super arrastada, cansativa e repetitiva. Acredite! Eu realmente te entendo! Porque esse não é um livro de grandes reviravoltas, nem mesmo de personagens super elaborados. Mas posso te contar uma coisa? Eles são mais reais. São como qualquer um de nós, com seus dias bons e ruins. E no meio disso tudo... com um pouco da rotina do dia a dia, que muitas vezes pode até ser bem monótona.
E posso confidenciar uma outra coisa? Mas esse tipo de narrativa é bem próxima do que acontece em um tratamento psicoterapêutico. Muitas vezes, o paciente pode ficar tão obcecado em falar das suas dores de um jeito altamente repetitivo, monótono e cansativo. Porque até que possam elaborar os acontecimentos, e dar a eles um novo significado, eles precisam se ouvir falando de forma exaustiva, até que o cansaço os vença, a ponto de poder perceber que podem parar de brigar com o que sentem, e seguir em frente.
E sabe o que é mais engraçado? É exatamente disso que eu gostei. Das divagações que vinham de forma tão poética. Da forma como ele (Edgar) falava sobre o quanto pintar o fazia se sentir mais completo e apaixonado pelo mundo. Ou de quando ele falava sobre os vínculos diferentes que tinha com cada uma das filhas. Assim como eu também podia sentir a sua dor, quando ele falava de um jeito de quem nunca vai se conformar da relação que acabava por um motivo do qual ele sequer se lembrava, e por isso mesmo, não havia como se responsabilizar.
E com todas essas dores na mala, eu gostei tanto de fugir com ele para Duma Key, essa ilha paradisíaca que o King descreveu de um jeito tão poético. Eu quase podia ouvir o som das ondas quebrando na praia, ou do silêncio ao redor que só era quebrado pelos sons da ilha, e em especial, por aquele som das conchas embaixo do Casarão Rosa.
E foi graças a toda essa solitude que Edgar pode se entregar à pintura, e como é gostoso ver a forma como o seu corpo implora para que ele se esvazie de todos aqueles sentimentos e emoções que o tomam, através da arte. E não é mesmo isso que a arte é? Uma expressão do que há de mais profundo em nós?
É claro que o mestre não deixou de fora dessa história um pouco dos seus elementos fantásticos, e eu até tenho que confessar que achei bastante assustadora essa versão de boneca que ele criou, que é o casamento desastroso entre a Annabelle e Coraline. Essas foram cenas que eu confesso que gostaria de ter visto com mais profundidade, porque dali poderia ter surgido aquele terror que o mestre colocava em suas histórias no começo da sua carreira. Mas tudo bem que não tenha sido exatamente assim.
O navio dos mortos, Perse, o anão de jardim, os medos mais profundos que cada um de nós revela em nossos pesadelos... tudo isso me fez pensar nos nossos sonhos confusos, estranhos e cheio de elementos sem sentido que temos quando passamos por algum tipo de perda. Sabe o que eu quero dizer? Quando se está ainda tão mergulhado no vazio, que até os sonhos parecem não ter nexo algum? Bem dizia titio Freud que nossos sonhos trazem muitos fragmentos do nosso dia. E quando os dias são mais vazios, por conta de algum sofrimento, os sonhos são igualmente vazios e sem sentido algum.
King ainda escreve nessa história: ?O sofrimento é o maior poder do amor?. De fato, eu não sei dizer se concordo ou não com isso, mas quando lemos essa frase, ela parece fazer tanto sentido. E por mais mórbido que possa parecer, não podemos negar que todo o amor vem acompanhado de uma dose de sofrimento. E se formos honestos, sem trapacear e jogar tudo para debaixo do tapete, vamos deixar que ele (sofrimento) se aproxime, para poder olhá-lo nos olhos, e respeitar toda a sua imensidão, para enfim, nos libertarmos.
E foi exatamente assim que o King deu a essa história o final mais perfeito de todos: quando seu protagonista decide encarar todas as suas dores de frente, com a coragem de quem ainda sente a tentação de não resistir e se unir a elas (suicídio!), para enfim reconhecer que mesmo que a tentação de dar fim a tudo possa ser irresistível, a vida não acaba em apenas dois atos. Ao contrário, depois de terminar de pintar todas as suas lembranças, tanto as felizes quanto as mais dolorosas, é hora de largar o lápis ou o pincel, porque o restante do que vem pela frente, é apenas vida.
?Duma Key? chegou no momento certo da minha vida, no que eu mais precisava, e subiu para o meu top 3 (e confesso que a vontade mesmo é de colocá-lo no top 1, mas não poderia fazer isso com ?O Iluminado?). Hoje me despeço do meu amado amigo Edgar com lágrimas, porque eu vou sentir muito a sua falta. E é por ter me apegado tanto a ele, que encerro esse livro que levarei para sempre no meu coração, com uma das suas frases mais emocionantes:
?Não desista até que o desenho esteja pronto. Não sei lhe dizer se essa é a regra fundamental da arte ou não - não sou professor -, porém acredito que essas oito palavras resumem tudo o que eu venho tentando falar para você. O talento é uma coisa maravilhosa, mas não adianta nada para quem desiste fácil. E sempre chega o momento - se o trabalho é sincero, se ele vem daquele lugar mágico em que pensamento, memória e emoção se mesclam - em que você quer desistir, em que você pensa que, se largar o lápis, sua vista ficará embotada, sua memória falhará e a dor irá embora."