Lorran 28/06/2010O Discurso SecretoEu tenho minhas manias. Quem acompanha o blog já deve conhecer algumas delas. Mas uma que eu não consigo e não quero abandonar de forma alguma é a de nunca ler romances policias fora da sequencia cronológica. Não adianta me dizer que o terceiro é o melhor livro, vou ler tudo, desde o começo. Uma hora eu chego no terceiro. Algumas tramas até podem ser lidas fora da ordem, sem alterar o contexto, mas certamente quem lê assim perde alguma coisa. Ou muita coisa em alguns casos.
É exatamente o que acontece no livro O Discurso Secreto, de Tom Rob Smith, lançamento da Editora Record. Isso porque é extremamente recomendado que se leia o primeiro livro do autor, Criança 44, antes de lê-lo. Por isso essa resenha acaba sendo dos dois livros, pois não conseguiria falar do segundo sem citar – muitas vezes – o primeiro.
Passadas as explicações, vamos aos livros. Descritos em uma palavra, eu diria apenas: extraordinários.
Tom Rob Smith usa como pano de fundo de Criança 44 a Rússia stalinista, regida sob mãos de ferro e uma brutalidade extrema. Já em O Discurso Secreto, encontramos a União Soviética sob domínio de Nikita Khrushchov, sucessor de Stálin e autor do discurso referido no título do livro, pronunciado no 20º Congresso do Partido Comunista Soviético, em 1956. Só por isso já deveria valer a pena ler estes livros. São uma aula de história.
Os livros abordam visões antagônicas. No primeiro, TRS explora os excessos cometidos pelo MGB, a polícia secreta do Estado – futura KGB. Mostra as injustiças cometidas em nome da revolução soviética, tendo a tortura e a prisão de inocentes como foco maior. No Discurso Secreto, é a vez de explorar as ações contra-revolucionárias, tendo os Vory – tão cruéis quanto a MGB – como principal gangue terrorista em ação.
Ambos os livros são protagonizados pelo agente – posteriormente ex-agente – da MGB, Liev Stepanovitch Demidov, um homem cegado pela doutrina do Estado, que só percebe tarde demais que defendia as premissas erradas. Liev é uma metamorfose ambulante, uma ingênua engrenagem do Estado, odiado pelos crimes que cometeu até mesmo pela própria mulher. A Rússia explorada no romance é um lugar onde reina a fome, a injustiça, a submissão e, principalmente, o medo – força impulsora do poder do governo socialista. É diante desse quadro catastrófico que Liev vai buscar, a qualquer custo, a sua redenção.
Uma pequena observação: a crueldade explorada nos livros é daquelas de deixar tonto, enjoado pela perspectiva de que algum ser humano possa ser capaz de cometer atrocidades do tipo contra um semelhante. Seja movidos pela sobrevivência ou pela vontade de poder, a violência é feroz. Meus joelhos chegaram a doer somente com a descrição de uma das torturas impostas à Liev.
Talvez por isso mesmo eu tenha gostado tanto. Gostado é pouco, fiquei simplesmente extasiado com esses livros. São narrativas sufocantes, que correm num ritmo alucinado, de prender o fôlego. Você lê meia dúzia de páginas e já está perturbado pela história. São tantas reviravoltas que você não consegue de forma alguma prever como terminará a história. São livros que eu gostaria de esquecer, somente para poder ler novamente, sentindo com ineditismo as emoções dessa surpreeendente leitura.
Ah, quase ia me esquecendo. Criança 44 já teve os direitos de adaptação para o cinema comprados por ninguém menos que o diretor Ridley Scott (Blade Runner e Gladiador).