Marcos Vinicius 01/06/2020
Procura-se o fôlego perdido
Sei que um livro é bom quando as pausas na leitura são tomadas não por distração ou tédio, mas por necessidade. Embora eu insistisse em levar esse livro até para a cozinha (quando me lembrava que não comia ou bebia há horas), há certas coisas que, convenhamos, não conseguimos fazer com um livro em mãos. E quando eu não estava lendo, frequentemente me pegava pensando nele, nos personagens, no mistério que se desenrolava a cada página virada.
Não digo que é um livro perfeito, mas suas qualidades são dotadas de tanta maestria que, ao ler a última linha, me senti incapaz de atribuir uma nota menor que cinco. Entretanto, essa é uma resenha e me sinto na obrigação de dar uma opinião honesta. Comecemos com o que é ruim para encerrarmos em bons termos, como esse livro merece.
Pontos negativos:
1 – Narrativa lenta
Há quem ame e quem odeie uma escrita poética, cravejada de adjetivos, metáforas, hipérboles e eufemismos. Eu me encontro no grupo dos que ama, quando bem feita, e Zafón domina sua arte. Entretanto, tive dificuldades para me acostumar com o ritmo da narrativa no início – linda, preciosa, mas lenta que só. Um personagem de Zafón não urina, ele “mija como um touro, tão caudaloso que dá inveja no rio Volga” (nesse momento eu não sabia se ria ou me contorcia de vergonha alheia). Os primeiros capítulos soavam como uma eterna introdução e parecia que a história não caminhava para lugar algum. Mas persista: quando a trama se encaixa aos trilhos, você é tomado em um solavanco e só para ao chegar na última estação.
2 – Tratamento de gênero, etnia e sexualidade
O livro é contado em primeira pessoa, em sua maior parte pelo próprio protagonista, Daniel. Vemos o mundo através de seus olhos e isso é, ao mesmo tempo, uma dádiva e uma maldição. Apesar de ter a alma de um escritor e, por isso, ser capaz de conduzir o leitor por uma Barcelona rica em detalhes e encantos, Daniel é o que a pensadora contemporânea Britney Spears chamaria de um “Womanizer”, porém virgem e com uma visão totalmente irrealista e sexualizada das mulheres. O comportamento de Daniel muda drasticamente quando há uma dama em cena, a ponto de que alguns trechos, claramente escritos para inebriar o leitor, apenas me fizeram revirar os olhos. Além de toda essa hiperssexualização feminina, em determinada passagem do livro, uma personagem negra é descrita com uma série de adjetivos diferentes dos que foram atribuídos às mulheres até então, ressaltando seu aspecto “exótico” e me proporcionando grande incômodo. Isso já seria o bastante para me fazer abandonar a leitura, mas ainda não conheço outras obras de Zafón e, por isso, decidi conceder-lhe o benefício da dúvida ao presumir que, sendo o livro narrado em primeira pessoa por um personagem homem-cis-hétero que viveu na primeira metade do século XX, sua narrativa simplesmente reflete o pensamento comum da época. Há um personagem queer na obra que, apesar descrito com ironia e certo tom de deboche, é visto por Daniel com muito carinho. Isso não me fez, porém, deixar de nutrir um ranço pelo protagonista que carreguei comigo por boa parte da obra.
3 – Diálogos pedantes
No tópico anterior, eu mencionei como a prosa de Daniel é rica em detalhes. O problema é que muitos personagens ostentam essa mesma voz narrativa em suas falas, proporcionando alguns diálogos que, de tão pomposos, te tiram do transe literário para questionar o emprego de algumas palavras e termos em contextos que deveriam ser informais. Essa crítica não seria válida caso o livro tivesse sido escrito em séculos passados, mas estamos falando de literatura moderna. Se Zafón pecou aqui, foi pelo excesso.
Acho que me alonguei tanto nos pontos negativos que as qualidades vão parecer menores em importância, mas acredite: o livro vale cada página. Pontos positivos:
1 – Narrativa poética
Poucas histórias são capazes de te tomar pelo braço e te transportar para além do seu quarto, da sua sala, de onde quer que esteja lendo, e frequentemente eu era tomado de sobressalto quando notava quão rápido as horas passavam enquanto eu lia esse livro. A Barcelona do início do século XX é descrita com tanta beleza e naturalidade que, ao terminar o livro, a sensação era de que já a conhecia de outras viagens. Os sentimentos dos personagens se fundem perfeitamente à prosa, criando uma atmosfera incomparável.
2 – Um mistério repleto de curvas
Quando o assunto é uma trama recheada de camadas e reviravoltas, Zafón deixa A Usurpadora no chinelo, mas sem soar cafona (nada contra, inclusive adoro). As histórias de Daniel e de Julian Caráx, autor do livro “A Sombra do Vento”, se cruzam de uma maneira inteligente e se revelam ao leitor deliciosamente no tempo certo, com um arco final de tirar o fôlego. Tenho umas poucas ressalvas no que se refere à resolução do mistério, mas guardarei para mim por motivos de: spoilers.
3 – Bons personagens
Apesar de uns poucos personagens monótonos (estou olhando pra você, Daniel), esse livro é um prato cheio de bons exemplos. Conforme vamos nos aprofundando no passado de Julián Carax, vão surgindo personagens interessantíssimas, que cumprem papeis importantes no enredo e não são colocadas ali por simples capricho narrativo. O vilão dessa obra cumpre bem o seu papel, provocando raiva, angústia, medo e, caso você seja uma pessoa muito iluminada, até certa empatia, tudo isso junto e misturado.
4 – Fermín Romero de Torres
Apenas porque esse é o melhor personagem do livro, quiçá um dos melhores da literatura moderna e, portanto, merece um tópico só para ele.
Finalizo essa resenha com uma citação. Aliás, essa obra está recheado de citações que ficariam ótimas na bio do seu Instagram ou Twitter, ou simplesmente gravadas na sua memória. Se essas não são razões suficientes para querer ler esse livro, nada mais será.
“Poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho até seu coração. As primeiras imagens, o eco dessas palavras que pensamos ter deixado para trás, nos acompanham por toda a vida e esculpem um palácio em nossa memória ao qual mais cedo ou mais tarde, não importa os livros que leiamos, os mundos que descubramos, o quanto aprendamos ou esqueçamos, retornaremos.”