Bruno 15/03/2014A invenção da solidão é, antes de um, dois livros. Convenientemente dividido em ambas as partes, a experiência, as vozes, a estrutura e os sentimentos suscitados por Retrato de um homem invisível são algo diferentes do que o seriam por O livro da memória. Entretanto, a união, não só temática, mas também em honestidade apresentadas por seu autor, Paul Auster, em ambos, faz do volume em duas partes um livro duplo.
A apresentação feita de Sam Auster por seu filho, Paul, pouco tempo após o final de sua vida, acaba na construção de um retrato comovente. Há a constante preocupação de não se construir uma imagem unilateral — e mais, superficial — de um homem que parece, senão caricato, no mínimo anedótico. Sua insistência em guardar o dinheiro (“como segurança”), os seus hábitos de usar roupas de segunda mão, barganha como meio de vida, a eliminação das distinções entre produtos, sua relativização de tudo através do mínimo denominador comum do preço. Fácil seria entregar-se à tentação de deixar estes aspectos falarem por si só, criarem a imagem perfeita do sovina. Assim como seria fácil, por sua distração, sua solidão, sua barreira de si contra o mundo, pintá-lo como o pai ausente por excelência.
Entretanto, o autor e seu filho deixa algo a mais ao apresentar causos e anedotas que parecem contraditórias com a pessoa retratada, mas que, ao mesmo tempo, adicionam-lhe camadas de complexidade e o tornam mais humano, palpável à experiência. Seu relacionamento com os inquilinos enquanto senhorio. Os poucos momentos que brilham na memória do filho, de pequenos jogos que fizeram juntos. Sua proteção exacerbada para com a filha esquizofrênica. Estes são outros aspectos que, na tentativa de pintar uma figura, de estabelecer uma história coerente, poderiam muito bem ter sido ignorados — mas a perda que isso teria sido ao destacar a figura da realidade, ao pintá-lo como uma caricatura rabugenta, seria lastimável.
A leitura desta primeira parte é menos fragmentária, apesar de ligeiramente anedótica. Pequenos casos, pontos pincelados em uma vida que já se foi, aqui e ali, que adicionam uma textura não linear ao retrato pintado. A prosa é bem amarrada e não difícil — ou ao menos mais agradável do que seria o “segundo livro” dentro de A invenção da solidão. Como primeiro romance completo, obra em prosa longa completo de Paul Auster, nada se deixa a desejar. O retrato pintado de um pai pelo filho, a rememoração de uma vida após o seu fim, a redenção de um homem, ou dois, enquanto um escreve sobre o outro, tentando lembrar, puxando da memória, fazendo este esforço consciente de imortalizar um ser humano em frases, em um texto quase poético que fortalece um laço que, durante a vida, não fora forte o suficiente.
A invenção da solidão é um livro sobre memória, sobre solidão e sobre paternidade. Enquanto Paul escreve sobre seu pai na primeira parte, é a sua relação com o filho, com a solidão e com o acaso que compõe aquele que é intitulado O livro da memória. O livro da memória, livro um. Temos um choque inicial — o livro soa, parece, sente diferente do que havia sido até então. Em uma possível referência à Kafka e ao seu pobre K., aqui Auster se torna seu próprio personagem, sua própria construção ficcional nomeada A., autor de poemas, pai de Daniel, separado, e procurando imortalizar no papel a sua frente, em um quarto escuro e apertado, os diversos temas que lhe passam pela cabeça.
paul_auster_203Em uma meditação talvez mais autobiográfica que o volume anterior, somos apresentados a pequenas anedotas e causos da vida, todos relacionados com a memória, com o acaso. Temos diversas relações e citações feitas por autores como Flaubert e Mallarmé que A. insere, seus conceitos, o que pode se provar, e se provou, uma leitura mais difícil. Menos a forma de um romance e mais parecido com um ensaio. A voz continua parecida, apesar da autoficcionalização do narrador, que se transforma em uma pessoa sem nome narrando a própria existência, agora mais fragmentária, de Paul Auster. Este encontra amigos anônimos e lida com o filho Daniel, decidido a não ser o pai que fora o seu. Alguém presente, que acompanha o filho na praia e no hospital.
Se o que chama a atenção como caso marcante em Retrato de um homem invisível era também a história não só do pai, mas dos avós do autor — a avó assassina o avô por problemas de infidelidade no casamento, e passa por um caso espetacularizado — aqui é a relação de A. com S., um ancião compositor em desgraça por ingenuidade política. Cria-se um relacionamento quase paternal, um sendo o filho que o outro nunca teve, e vice-versa. Vive em um lugar minúsculo, povoado por uma pessoa e povoada por seus pensamentos. Cômodos pequenos estes que também tem o seu próprio espaço, como santuário de reflexão, armazém das ideias.
É nesta solidão que se vê e se sente quem realmente é, menos como maldição como parte inerente da própria vida. Parece que, mesmo que pai e filho não apresentem equivalência em gostos, inclinações, e mesmo no modo como tratam a solidão que de certa forma invadem a vida, podemos sentir aí mais um laço que, em vida, parecem não ter percebido.
Sentimos no livro a constante presença da memória. Não só se fala em memória, mas se fala sobre memória. O que seria o primeiro livro do que um experimento prático dos assuntos que o primeiro aborda? Se em O livro da memória, temos A. discorrendo livremente sobre a natureza do pensamento, sobre do que lembramos, como lembramos, os acasos da memória, sobre os contos de Sherazade e a importância da rememoração, o seu conto a respeito do pai não deixa de ser este exercício, esta guinada de sentido onde se dá, na rememoração de uma vida, sentido para a mesma, imortalizando-a como uma obra constituída de significação mental para os outros que a percebem. Sam Auster é significado na medida em que seu filho escreve sobre ele, após a sua morte, o fim de uma vida onde deixou pouco legado. E, após isso, o próprio filho dá significado, não apenas à própria vida, mas ao que Daniel pode se tornar.
É interessante pensar nas reações deste quando por ventura ler esta obra quando mais maduro.
A invenção da solidão é autobiográfico, mas não é uma autobiografia — não em seu sentido mais genérico. Tampouco é a biografia de Samuel. Menos ainda um ensaio filosófico sobre a natureza da memória. É algo entre os três, mas nenhum deles. É uma obra fragmentada e tridimensional, cheia de relações e introspecções, significados a acontecimentos, a pessoas, a sentimentos. E, sem dúvida, é o fruto de uma mente solitária, trabalhada não apenas no hábito da introspecção — mas na natureza desta própria.
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