3.0.3 19/02/2024
Quando as portas da percepção se abrirem, tudo surgirá como é, infinito
“O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.”
William Blake (1757-1827) foi criado por um pai que seguia as ideias do visionário Emanuel Swedenborg (1688-1772) e que optou por não lhe proporcionar uma educação convencional. Em vez disso, o poeta embarcou em um caminho de aprendizado místico, mergulhando no estudo de ocultistas. Romântico convicto, Blake foi um homem dotado de perspectiva singular. Em um cenário cuja paisagem literária prosperava com base na influência dos clássicos “augustanos” – que proporcionavam uma utopia àqueles que aderissem às normas sociais –, Blake atentou aos que viviam na miséria, em uma sociedade marcada sobretudo pela injustiça, sob a influência opressiva que a igreja e o estado exerciam nas pessoas.
O casamento do céu e do inferno (1970) é uma obra basilar de Blake que compreende uma série de aforismos escritos por meio de paradoxos. Neles, Blake examina a moralidade convencional e afirma que a humanidade não se limita à dicotomia alma/céu e corpo/inferno. Em vez disso, segundo o poeta, o corpo humano não é separado da alma, pois as energias, que são a essência que sustenta a vida, emanam de todas as estruturas corporais. Visionário à Swedenborg, o poeta teve vislumbres do reino dos espíritos. Em vez de confiar em doutrinas ou regulamentos pautados pela religião, o seu conhecimento foi adquirido com base na análise. Sendo assim, valendo-se de sua iniciação druida, Blake critica a falácia dos conceitos religiosos contemporâneos que insistem em colocar o céu contra o inferno dentro de uma estrutura binária simplista.
Originalmente impressa em vinte e sete placas de cobre, O casamento do céu e do inferno prova o método de impressão de Blake, que uniu textos e desenhos nas placas antes de imprimi-las e pintá-las à mão. Incorporando vários gêneros e estilos (prosa, provérbios, poesia em verso livre e ilustrações), a obra celebra o alvorecer de uma nova era de libertação política e de emancipação espiritual após a Revolução Francesa.
Ao mesmo tempo em que desafia as noções tradicionais de bem e mal, Blake critica as crenças teológicas de seu antigo mentor, Emanuel Swedenborg. Abrindo mão da razão e da moderação, que são defendidas pelos anjos ortodoxos, o poeta condena as moralidades impostas pela Igreja e pelo Estado e enaltece a energia e o desejo. Com isso, a intenção de Blake é reparar injustiças, encorajar a autoexpressão e revelar a essência ilimitada da existência.
A obra inicia com um poema em verso livre cujo título é “O Argumento”. Nele, o poeta apresenta Rintrah, símbolo da fúria justa e arauto da revolução, e prossegue desvendando o seu tema, desafiando as perspectivas religiosas tradicionais. Ele enfatiza a necessidade de opostos na estrutura da existência, especificamente nos campos da energia e da razão. Os virtuosos, que são os Anjos, proclamam a virtude da razão, alinhando-a com o céu e com a alma, enquanto denunciam o vício da energia, alinhando-o com o inferno e com o corpo físico.
O trecho "A Voz do Demônio" desafia o equívoco que cerca os anjos tradicionais, atestando que a felicidade genuína deriva das forças de afirmação da vida que surgem do desejo natural e imaginativo. Além disso, enfatiza a ligação inseparável que há entre o corpo e a alma e defende que o desejo não deve ser represado pela racionalidade.
A partir desse ponto, Blake estende a sua ideia, dividindo-a em cinco seções, todas escritas em prosa, sob o título de "Uma Visão Memorável”. Na primeira parte, mergulha nas profundezas da paixão criativa e compila setenta "Provérbios do Inferno". Esses aforismos celebram a vitalidade da vida e a supremacia do instinto sobre a racionalidade. Na segunda parte, Blake inicia uma conversa com os antigos profetas Isaías e Ezequiel. Durante este encontro, ambos os profetas validam a perspectiva de que a essência ilimitada da existência só pode ser verdadeiramente compreendida por meio do aprimoramento dos sentidos humanos. Na terceira parte, vimos como a transmissão do conhecimento é retratada, geração após geração, por meio da arte da criação. Blake diferencia os Devoradores, representados pela razão, dos Prolíficos, representados pelos artistas. Na quarta parte, Blake embarca em uma expedição com um representante da fé tradicional. Ambos atravessam os reinos da imaginação e, nessa odisseia, cada um revela ao outro o seu verdadeiro destino. Aqui, é a perspectiva visionária de Blake quem vence. Ele tece críticas à racionalidade e aqueles que negligenciam o reconhecimento das forças opostas. Na quinta e última parte, o Diabo e o Anjo se envolvem em mais uma batalha de perspectivas. O Anjo sucumbe ao ponto de vista do Diabo, e ambos criam uma amizade inesperada. Juntos, mergulham nas páginas da Bíblia, desvendando os seus conhecimentos.
Por fim, “Uma Canção de Liberdade" é uma coleção de vinte versos que anunciam a iluminação espiritual do mundo provocada por medidas políticas revolucionárias. A obra termina com um Coro que declara a sacralidade de todos os seres vivos.
O casamento do céu e do inferno é um labirinto de insanidade, uma dança entre extremos levada ao limite como uma forma poética de expressar visões transcendentes para o mundo humano, rompendo com as amarras das teorias áridas da era iluminista. Nessa toada, Blake celebra a liberdade, e isso significa romper com os grilhões das crenças religiosas e das amarras materialistas impostas pelos filósofos. Para o poeta, a poesia é a união de luz e sombra, de loucura e sabedoria, de suavidade e vigor, de racionalidade e energia, uma mescla destinada a desafiar o eu interior, culminando em uma fusão de opostos que revela o absoluto. Assim, os versos de Blake são a encarnação dessa união mística, uma ruptura dos valores obsoletos ou superficialmente modernos. Por meio de suas palavras, o autor desafia as normas, clamando para que a sociedade persiga o desejo sem amarras, mesmo que isso signifique mergulhar no inferno. De fato, Blake, para dar vida às suas ideias, não hesita em recorrer a uma infinidade de aforismos, demonstrando assim que o inferno é o ponto de partida para a virtude.
Segundo Jorge Luis Borges (1899-1986), William Blake ocupa uma posição peculiar na literatura, visto que ele é um poeta verdadeiramente único e indescritível, profundamente religioso, mas com uma cosmogonia própria e distinta que às vezes se volta para o paganismo. Por meio da linguagem, Blake acreditava na potência imagética da humanidade, enfatizando a sua natureza sensorial. Sucessor poético de John Milton (1608-1674), a influência do poeta se estende a figuras como Rimbaud (1854-1891), Artaud (1896-1948) e Huxley (1894-1963).
“Que os Sacerdotes do Corvo da aurora, não mais em negro mortal, maldigam com sua rouca voz os filhos da alegria. Nem que seus aceitos irmãos – a quem, enquanto tirano, denomina livres – fixem parâmetros ou construam telhados. Ou que a pálida luxúria religiosa chame aquela virgindade que deseja mas não age! Pois tudo que vive é Sagrado!”