Sinfonia Patética

Sinfonia Patética Klaus Mann




Resenhas - Sinfonia Patética


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Michele Soares 13/01/2022

Daria um romance (ou 7 parágrafos de qualidade duvidosa sobre eu sendo emocionada).
Durante a leitura muitas vezes me ocorreu elogiar mentalmente a sensibilidade do Klaus Mann (que eu tampouco conhecia até ler esse livro) em ver na vida do Piotr um romance - uma vida, uma biografia, que encontra expressão mais perfeita na forma de uma narrativa literária. Por perfeita, isso não quer dizer que o romance não tenha defeitos? Claro que não, eu posso reunir um punhado de partes em que a escrita me incomodou, dados que não fazem do Mann nenhum prodígio de refinamento técnico. De todo modo, falo da pessoa, da pessoa Piotr Tchaikovsky, a quem um romance caiu bem como uma luva ou como um terno ou como um casaco de pele. Da pessoa que me cativa, que me encanta, num gênero que me cativa, que me encanta igual. Existe coisa mais romanesca que ser um dia ovacionado a plenos pulmões em Odessa, recebendo a mais viva e emocionada das celebrações, para no outro ser removido da primeira classe de um trem, em função de um funcionário que não sabia sequer quem ele era? (Este último episódio não foi narrado no livro, só a recepção em Odessa. Ainda sim aconteceu e é curioso que essa cena tão romanesca tenha ficado de fora. Existem outras, como a da serenata para Piotr em Leipzig, em que muitas pessoas ignoram quem ele é e confundem sua música com um hino nacionalista qualquer - sua música as empolga, mas não pelo motivo que ele gostaria - ou como quando ele se despede de Tiflis e tece conjecturas sobre um jovem parado na estação, imaginando que este o admira e deve conhecer todas as suas composições, quando na verdade era só um vadio que não sabia quem ele era).

Nas linhas gerais, você pode identificar dados que perfazem qualquer caracterização do que temos no nosso imaginário coletivo acerca de um gênio, ainda mais se esse gênio for um gênio romântico: a alma torturada, o conflito interno e externo, o temperamento sensível, o flerte com a morte e a arte, no caso a música, como a transfiguração estética de todos esses sofrimentos. Antes que você largue o livro, no entanto, pensando ser só mais uma história de um sadboy qualquer (o que ela, obviamente não é) eu adianto que existem elementos muito particulares que tornam a narrativa da vida do Piotr particular, complexa e muito sensível também. Sim, estou falando da homossexualidade dele, como não falar? Todos falam e esse é um dado inerente à pessoa Piotr. T. Esse é um aspecto dele que é trabalhado de forma muito sensível ao longo de todo o livro, é uma coisa que o tortura de muitas formas, da ausência de um afeto sincero e correspondido até o sentimento de isolamento mais geral, na forma de um ensimesmamento - essa solidão extrema que aprisiona quando é procurada e que quando é perdida (no meio das turnês, apresentações e recepções desgastantes) vira uma saudade, um desejo. Além disso, como disse aí, a arma torturada, a triste figura, coexiste ao mesmo tempo com a face mais doce, mais gentil, mais supersticiosa, por vezes até cômica do homem, quando entre aqueles a quem considera: com um jovem que lhe recorda de um amigo-amante, com figuras como os Grieg, Brodsky e as pessoas de Leipzig, Rubinstein, Saint-Saens em Cambridge, Mahler e sua aspereza em Hamburgo, Desireé Artôrt, Wladmir/Bob, os jovens de São Petersburgo, Fanny Durbach.

Assim, é de forma ambígua, muitas vezes contraditória, que Klaus Mann pinta o retrato de Piotr e sua relação com o amor, com a glória, com as pessoas que o cercam. Ele ocupa um lugar de outsider, não só social e afetivamente, mas também na música. Para o bem ou para o mal, Tchaikovsky era francamente popular, enquanto esteve vivo. Os teatros lotavamm e, a depender do lugar, ovacionavam-no com grande entusiasmo, enquanto a crítica em geral se manteve sempre fria e receosa, quando não completamente ferina. A crítica exercia um poder muito grande no século XIX, tinha o poder de definir públicos e carreiras, lotar um teatro ou esvaziá-lo, fora o arranhado que deixava no amor-próprio do artista. Nada disso deve ser ignorado. Além disso, Piotr tem pouco mais-pouco menos de 50 anos no tempo do romance e já é tido como velho por todo mundo, inclusive por ele mesmo, que passa a questionar em larga medida as suas capacidades de compositor. Esse homem fora do tempo, fora do espaço, que não se sente em casa em nenhum lugar, em nenhum momento, é um atrativo para o romance e é especialmente interessante do ponto de vista do escritor alemão exilado que escolhe dedicar um tempo da sua vida a escrever a história desse outro homem, que ele demonstra conhecer tão bem e admirar sem rebuço.

Depois de tudo isso, dessa tentativa de exprimir a relação complexa entre a figura e seu retrato tal como pintado por Mann, me sinto mais confortável em exprimir como não gostei do último capítulo. Eu estava particularmente receosa para descobrir como Mann trabalharia toda a aura de mistério em torno dos momentos finais do Piotr (biografia tem spoiler?) e da abertura deliberada quanto ao programa da Sinfonia Patética. Quanto ao programa, tudo bem, continuamos sem respostas, como deve ser, embora se apresentem algumas sugestões no capítulo que acentuem o vínculo entre Sexta Sinfonia e o relacionamento malfadado com o sobrinho, Wladmir/Bob. Uma interpretação que li recentemente e que gosto nas linhas gerais é a da Marina Ritzarev.

Sobre a morte, gostei menos. As teorias existentes pelo mundo afora vão da mais absurda, até a mais crível. Suicídio ou acidente? Os dois, para Mann, que decidiu colocar o suicídio acidental (se é que isso existe) sobre uma questão de aposta, uma aposta com o Divino, que não seria novidade na sua biografia e que entraria na onda de reencontros e reencenações que perfazem as partes finais do livro/vida de Piotr (Fanny Durbach, Apuchtin, a morte por cólera, tal qual a mãe). Essa aposta, é claro, tende a algum nível de deliberação suicida mais marcante - teria sido ótimo se Mann pudesse ser sutil e ter deixado esse dado a subentender (o problema é que ele gosta *muito* de falar, às vezes, rs). Porém, quando digo que não gostei desse tratamento, tampouco sei o que gostaria de ouvir no lugar. Que ele não foi um suicida? Mas e se ele for? Essa parte da história de Piotr é a mais sombria, não porque seja o seu fim, mas porque estamos no escuro, talvez estejamos para sempre, parafraseando com liberdade a fala de um crítico sobre a morte de Tchaikovsky, que rendeu, inclusive, um episódio inteiro em um podcast de true crime (ótimo, por sinal). Esse capítulo último, parece, de todo modo, apresentar um novo Piotr, um outro Piotr, quase cruel, que destoa com a caracterização predecessora, foi incômodo de ler (e mais incômodo para o Piotr foi ainda morrer e morrer uma morte horrível).

É quando você logo nota também os paralelos desse capítulo com A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, mas sem o refinamento literário, novamente. Existem paralelos naturais: na Rússia do XIX parece que todo homem flerta com a advocacia ou se forma no ramo. Piotr viaja, viaja, viaja, vai até onde personagens romanescos mais desesperados nunca pisaram e não está em casa em lugar algum - tal como Ivan, ambiciona os espaços, transita por eles, para descobrir que sempre há mais, queira ele ou não, sempre há mais. Em Ivan Ilitch (de quem Piotr compartilha o patronímico, fantasticamente comum na Rússia), Tolstói faz da morte de um completo estranho, de uma pessoa comum, a nossa morte também. Já a morte de Piotr é a morte dele, de um ícone, uma morte que, a despeito de terrível, é tratada de forma distanciada, como um evento particular, a que somos convidados pelo autor a lamentar com os olhos pesarosos. Há um descolamento da perspectiva de Piotr nos momentos finais e um sobressalto da voz do autor (que se evidencia em outros momentos que me parecem arbitrários - como eu disse, sem refinamento técnico preciso ou evidente pra mim). A morte de Piotr é só dele, no final. É um tratamento justo e legítimo, mas, novamente, não posso dizer que apreciei 100%. De um livro que tem “Patética” no título, isolando do contexto, já podemos pressupor como é esse final: carregado de páthos, de dor, de abraços e afetos não dado e não recebidos, de sofrimento. Não menos do que existiu em vida, é claro - ao menos agora, enfim, ele parou de morrer.

Romance biográfico, biografia romanceada. Biografia de um, de um que é singular, de um que hoje é para muitos o maior de nós, mas que um dia beirou ser quase ninguém. Biografia de um tempo, de uma cultura, de várias culturas. Pintura e fotografia, figura flagrada no entretempo dos séculos, do período, da estética, da música, da arte. Sem lugar e em todos os lugares. Voz suave, felizmente gravada, que nos segundos salvos presenteiam a imaginação com um gostinho do que seria ouví-lo cantar ou falar francês, mais acessível do que o russo. Uma voz que continua cantando, cantando, sem minguar, ao contrário do Finale de sua Patética. Não, ele não morre aqui, mas fica congelado para sempre, preso, para o bem, para a glória ou para o mal, nas linhas do retrato que dele pintaram, nas melodias que ele próprio enformou, nas palavras que escreveu, que o descrevem, que escrevem sobre ele e que traçam o seu desenho, sem nunca tomar a essência. Sua essência é só para si, protegida e inatingível, como a de Montaigne. Fiquemos com os fragmentos, bonitos como são. Fiquemos com o retrato, então. Ele deverá bastar. Precisa bastar. Tem que bastar.
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