jota 20/08/2020Avaliação da leitura: 4,0/5,0 – BOM (prosa de alta voltagem poética, que pode provocar curto-circuito)
Primeira vez que li sobre o polonês Bruno Schulz (1892-1942) foi em Mecanismos Internos – Ensaios Sobre Literatura (Companhia das Letras, 2011), de J. M. Coetzee. Nele, o autor de Desonra (idem, 2000) trazia seu enfoque particular sobre a vida e a obra de importantes autores do século XX. Aos poucos fui me informando mais sobre Schulz e os demais escritores tratados por Coetzee, mas foi somente neste mês que me aventurei a ler Lojas de Canela, publicado em 1934. São quinze histórias que apresentam certa organicidade, tanta que alguns críticos afirmam que Lojas é, no fundo, um romance fragmentado formado por contos, quadros coloridos mágicos e fantásticos da infância do menino Jozef, que é ninguém menos que o próprio Bruno Schulz. Lojas de Canela seria, assim, um romance autobiográfico. Parece isso, de fato.
Além das história de Jozef e de seu pai Jakub (a alusão aos bíblicos José e Jacó é obvia), o caprichado volume da Editora 34 traz mais cinco narrativas extras - que não figuraram no outro livro de contos de Schulz, lançado em 1937, Sanatório Sob o Signo da Clepsidra - e Schulz, este um extenso posfácio escrito pelo italiano Angelo Maria Ripellino, na verdade quase um ensaio acadêmico. São cerca de quarenta páginas (com cópias de algumas ilustrações de Schulz) nas quais Ripellino examina as narrativas e analisa as semelhanças e diferenças entre os textos de Schulz e os de Franz Kafka (1883-1924). Estabelece ainda as relações de Schulz com a obra Ferdydurke (Companhia das Letras, 2006), narrativa um tanto alucinada do igualmente polonês Witold Gombrowicz (1904-1969), que também dialoga com os textos kafkianos.
Quando a quase totalidade da obra de Schulz foi traduzida para o francês, surpreendendo os críticos do país por sua qualidade e originalidade, eles logo trataram de compará-la aos escritos de Kafka, de ascendência judaica como Schulz. E saudaram-no como um Kafka polonês, não apenas porque o pai é um personagem altamente destacado nas histórias dos dois autores, também pelo absurdo e fantástico que elas encerram. Assim é que Jozef vê seu doentio pai imitar uma ave e ao final se transformar em algo semelhante a um condor. Num outro momento o pai vai, aos poucos, se assemelhando a um artrópode e finalmente se transforma numa barata, metamorfose essa que dialoga com a da obra-prima de Kafka. E mais: Jakub morre num episódio mas retorna à vida depois, mesma coisa que ocorre com outra personagem destacada de Lojas, Adela, a empregada da família.
No entanto, diferentemente de Kafka que via o pai como uma figura gigantesca e imperiosa - em A Metamorfose ele atira maçãs em Gregor Samsa, metamorfoseado num besouro cascudo -, Schulz, ao contrário, vê seu progenitor com compaixão e certa naturalidade, apesar do ridículo e da bufonaria envolvendo o personagem. Também a prosa floreada, poética do polonês é algo que o distingue do autor tcheco, de escrita mais cerimoniosa, direta e amarga. Schulz, além disso, era um exímio desenhista: foi professor de desenho e trabalhos manuais durante vários anos, além de pintor e outras coisas. Dentre essas outras coisas, coincidentemente, foi o tradutor de O Processo, de Kafka, para o polonês.
As lojas de canela do título não eram um comércio especializado em produtos feitos com a especiaria asiática, mas a loja de tecidos do pai de Jozef era um mundo à parte, incomum. Aquelas lojas, “emblema do mundo schulziano”, conforme Ripellino, eram na verdade tendas e barracas de feira noturnas que vendiam chocolates, doces, balas coloridas de hortelã, sabonetes, ninharias douradas, cornetas, bugigangas diversas e ou raras. Eram chamadas de lojas de canela simplesmente porque os lambris escuros com que eram revestidas tinham a cor da canela. Já a loja de tecidos do pai, onde os manequins pareciam adquirir vida própria, era um empório de tecidos variados que, nas palavras de Schulz, abrigava a escuridão do feltro e traças negras, emitiam um calor felpudo, constituía um verdadeiro acampamento de pano e veludo que fascinava Jozef e era a razão de viver do pai.
Existe a realidade em que nos encontramos e existe o reino das palavras, a realidade habitada pelos personagens de Schulz. Ele escreveu num pequeno ensaio (que não consta dessa edição mas pode ser facilmente encontrado na rede), A Mitificação da Realidade: “Normalmente, consideramos a palavra como uma sombra da realidade, como um reflexo. Seria mais justo considerar o contrário. A realidade é uma sombra da palavra.” Desse modo, entre outras coisas, seus personagens não estão sujeitos a uma lógica de continuidade temporal, podem se transformar, morrer e reaparecer depois, como já foi dito antes. Mesmo que tudo isso cause estranheza, outros acontecimentos narrados também, como os textos de Schulz têm alta voltagem poética então a realidade fantástica em que eles se dão não parece algo assim tão bizarro, porque todas as coisas se conectam, fazem sentido.
Quando a imaginação de Bruno Schulz viaja na palavra, sombra da realidade, conforme ele a designou, ela (realidade) entra em transe, se transforma, se metamorfoseia a cada instante, e para o leitor o mundo em que vive Jozef, Jakub, Adela e os outros personagens passa a se assemelhar a um país de sonhos carnavalescos (embora também com alguns momentos de tensão), alguma coisa muito além da casa e das lojas da infância, e a poesia e a fantasia invadem todas essas páginas escritas há longo tempo, podendo nos transportar imediatamente para muito longe, para aquele mundo de Jozef e outros mais.
Imagino que a escrita metamórfica e altamente poética de Schulz tenha dado muito trabalho ao tradutor Henryk Siewierski, ainda que ele seja um polonês radicado no Brasil, mas que conseguiu trazer muitos climas de intensa beleza e magia para o leitor, como no parágrafo inicial de Agosto, a primeira (e bela) história de Lojas de Canela:
“Em julho meu pai viajava para uma estação de águas e me deixava entregue, com minha mãe e meu irmão mais velho, à voragem dos dias de verão, estonteantes e brancos de calor. Embriagados com a luz folheávamos aquele grande livro das férias, cujas folhas todas ardiam de tanto fulgor e tinham no fundo a polpa das peras douradas, doce de desmaiar.”
No parágrafo seguinte virão manhãs luminosas que Adela despejava de seu cesto, cerejas brilhantes cheias de sumo, damascos de polpa dourada que guardava a medula das tardes prolongadas, mantas de carne com teclados de costelas de vitela, algas e legumes de sabor indefinido, ingredientes e vegetais telúricos do almoço, de cheiro selvagem e campestre. Iniciada na primeira narrativa essa toada poética segue até a última página do volume, num crescendo infinito. O problema é que, como apontou alguém, a excessiva poeticidade dos textos de Schulz pode cansar um pouco o leitor. O que é verdade, e não apenas isso: seu desvio das fórmulas consagradas pela ficção tradicional faz com que as histórias se percam um tanto no meio desse intenso uso de recursos poéticos. Mesmo assim vale a pena conhecer Lojas de Canela, sem dúvida.
Lido entre 12 e 19/08/2020.