Cassio Kendi 07/10/2021
Em Joanesburgo, há um daqueles ônibus circulares em que você recebe um bilhete único e pode parar nos pontos turísticos da cidade. Desci em Constitution Hill, uma prisão em que já estiveram detidos gente como Nelson Mandela e Mahatma Gandhi, e que foi transformada em museu com o fim do apartheid. Já era tarde, e o ônibus do qual desci era o último do dia. Fui para a entrada. Fechado. Fui chamar um Uber, decepcionado. Bateria desligada. Caramba.
Perguntei para um guarda se havia um ponto de táxi ali perto. Ele não pareceu me entender, mas me levou para o escritório administrativo do prédio. Falei com dois funcionários, que se ofereceram a me levar até a casa da família que me hospedava. Chegando lá, coincidência: eles conheciam a mãe, que trabalhara no museu por muito tempo. Entre um café e outro, a mãe me disse "Esse aqui sabe onze línguas, aquele lá sabe um pouco menos, só oito". "Só oito", repeti mentalmente.
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Nascido do Crime é um daqueles raros livros que ensina tanto quanto diverte. Por meio das histórias de infância de Trevor, é possível entender diversos aspectos da história recente da África do Sul, e os efeitos do apartheid no cotidiano de uma família 'misturada', algo proibido na época (o pai de Trevor é branco e suíço, e a mãe, negra e sul-africana). Ele exemplifica a divisão social em negros, brancos e pardos com histórias de seus recessos escolares, e explica como a estratégia de colonização de 'dividir para conquistar', que fomentava o conflito entre diferentes povos nativos, teve como consequência a multiplicidade de línguas faladas em uma mesma região. "Só oito", pensei neste ponto do livro.
Normalmente, não sinto tanta diferença entre ouvir ou ler um mesmo livro, mas neste caso, a experiência auditiva é muito superior. O audiobook é narrado pelo próprio autor, que é um apresentador, comediante e excelente contador de histórias. A tonalidade é praticamente perfeita e as imitações dos diferentes sotaques e particularidades das personagens são impagáveis. Perdi a conta da quantidade de vezes em que dei risada, e teria rido bem menos se estivesse lendo ao invés de ouvindo.
Um exemplo de trecho que me fez rir alto, em que o autor discute com a mãe se devem ir para a igreja após o carro quebrar:
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"É o diabo." - era a explicação dela para o carro enguiçado - "O diabo não quer que a gente vá à igreja. É por isso que temos que pegar a van."
Sempre que me via contra a teimosia religiosa da minha mãe, eu tentava, da forma mais respeitosa possível, argumentar buscando um ponto de vista diferente.
"Ou" - eu arriscava — "O Senhor sabe que hoje não deveríamos ir à igreja, e é por isso que ele fez o carro enguiçar, pra que a gente fique em casa como uma família e tire o dia pra descansar, pois até o Senhor descansou no sétimo dia."
"Isso é o diabo falando, Trevor."
"Não, porque Jesus está no controle, e, se Jesus está no controle e nós rezamos para Jesus, ele faria o carro funcionar, mas não foi isso que aconteceu, então..."
"Não, Trevor! Às vezes Jesus coloca obstáculos em nosso caminho para ver se somos capazes de superá-los. Como Jó. Isso pode ser um teste."
"Ah! Verdade, mãe. Mas o teste pode ser comprovar se estamos dispostos a aceitar o que aconteceu e ficar em casa, louvando Jesus por sua sabedoria."
"Não. Isso é o diabo falando. Agora vai se trocar"
"Mas, mãe!"
"Trevor! Sun’qhela!"
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Uma grande parte das histórias envolve este relacionamento materno. Segundo o autor, "Eu pensava que eu era o herói de minha história, mas escrevendo o livro, passei a entender com o tempo que minha mãe era a herói".
Única coisa de que senti falta foi entender como Trevor passou de vendedor de CDs piratas para apresentador de um dos programas de TV mais populares dos Estados Unidos. Espero que saia uma segunda parte da autobiografia, contando histórias desta transição.
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ps: Um aplicativo muito bom para escutar livros é o Audible. Se você não tem conta, eles te dão 30 dias de teste e um crédito gratuito, para trocar por qualquer livro. Ganho exatos zero centavos com esta recomendação, sou apenas um cliente muito satisfeito.
ps2: Todas as entrevistas que vi com ele são boas, tanto como entrevistado quanto como entrevistador. Minha favorita é esta, em que ele entrevista 'gogo', sua avó: https://www.youtube.com/watch?v=1s5iz6ml-qA
ps3: se você conhecer um livro com características semelhantes (autobiográfico, engraçado e que conte o contexto social do país do autor), por favor, me indique.