Fabio Shiva 29/12/2023
CONTRA O TERROR DO RACISMO, O DESTEMIDO PROTAGONISMO NEGRO!
Alguns livros nascem de ideias geniais. Esse é certamente o caso de “Território Lovecraft”, livro que devorei em um permanente estado de euforia e deleite. É maravilhoso quando a Literatura serve ao elevado propósito de mudar positivamente o mundo, ao mudar a consciência das pessoas. E quando isso é feito pela via lúdica, por meio de histórias atrativas e bem contadas, meu desejo é aplaudir de pé, até arrancar o couro das mãos!
H. P. Lovecraft foi um escritor estadunidense celebrado como um dos mestres do terror, ao lado de Edgar Allan Poe. Eu sempre achei as histórias dele meio pomposas e artificiais, mas é inegável a força imaginativa que legou ao mundo toda uma mitologia moderna, que vai do deus-monstro extradimensional Cthulhu ao livro demoníaco “Necronomicon”, que acabou ganhando existência “real” para além das histórias do autor. Quando tomei consciência do racismo explícito na prosa de Lovecraft, contudo, desisti de continuar tentando gostar de lê-lo.
Mas foi justamente esse racismo o estopim para a explosão de criatividade de Matt Ruff nesse livro. Criatividade significa encontrar novas conexões entre elementos até então não relacionados. Uma boa definição para o “Território Lovecraft”, concebido por Ruff como uma extensa área dos Estados Unidos na década de 1950 que abriga dois tipos bem distintos de terror: o sobrenatural e o racismo. Essa ambiguidade foi muito bem resumida na chamada publicitária da editora:
“Um vulto de branco é mais assustador se for um fantasma ou um membro da Ku Klux Klan?”
O livro é estruturado na forma de contos sequenciais, que compõem a narrativa mais extensa de um romance. Apesar do tema horrorífico e horroroso, as histórias seguem mais a linha da aventura, sendo bem acessíveis ao público jovem e adolescente. E ainda não falei do ingrediente principal: a família e os amigos de Atticus, que protagonizam as aventuras. Atticus é um jovem negro, mas já veterano da Guerra da Coreia, que descobre ser possuidor de um legado de família muito poderoso e, ao mesmo tempo, muito perigoso. Isso o leva em uma jornada de autodescoberta através do “Território Lovecraft”, encarando assombrações e enfrentando o ódio racista. Sua família e seus amigos o acompanham em sua jornada, cada qual contribuindo com sua parcela de coragem e personalidade para vencer os desafios do sobrenatural e da intolerância.
E aqui está uma das melhores sacadas do livro: acostumados a lidar diariamente com a monstruosidade do racismo, Atticus e cia. nem piscam ao lutar com monstros, fantasmas e outras criaturas, que afinal são bem menos apavorantes. Sensacional!
Algumas das cenas de racismo são tão grosseiras e agressivas que a princípio imaginei que fossem um recurso estilístico do autor, para realçar por meio da hipérbole a violência racista. Mas que tristeza foi constatar que não houve exagero, e sim pesquisa. Uma das cenas que achei rudes demais para serem verdadeiras foi a menção às “cidades do poente”, que existiram de fato:
“Entre 1890 e 1968, estabeleceram-se nos Estados Unidos milhares de cidades em que a livre circulação era permitida apenas a brancos. Os habitantes (brancos) eram autorizados a apedrejar ou mesmo atirar nos negros que andassem nas ruas após o pôr do sol.”
Outra surpresa (essa feliz) foi descobrir que o autor Matt Ruff é branco. Renovei minha esperança ao saber disso. Percebo algo como um movimento coletivo para reescrever e ressignificar a história humana por meio da ficção, de forma a lhe atribuir novas perspectivas e possibilidades. Isso vai desde a adoção de elencos multiétnicos em filmes e séries de cunho histórico à pura reinvenção da história pela ficção, que tem em Quentin Tarantino um de seus mais célebres experimentadores, com filmes como “Django Livre”, “Era uma vez em Hollywood” e, principalmente, “Bastardos Inglórios”. Outro magnífico exemplo dessa recriação ficcional é o livro “The Underground Railroad (Os Caminhos para a Liberdade)”, de Colson Whitehead, que virou uma ótima série do Prime Video (https://youtu.be/_Pq5Usc_JDA?si=x6OO_BRxEFHNRoOz).
Pensar nisso me fez lembrar da importante fala da filósofa Sueli Carneiro:
“Todos os brancos são beneficiários do racismo, mas nem todos são signatários.”
Taí uma frase que deveria ser estudada em todas as salas de aula do Brasil. Na medida em que as verdades profundas e necessárias que ela sintetiza forem se firmando na consciência dos brasileiros, teremos certamente lindas manifestações nacionais com o mesmo brilho e relevância que o “Território Lovecraft” de Matt Ruff.
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