Arsenio Meira 20/04/2013
O protagonista deste romance genial é António Jorge da Silva. Com 84 anos de idade, Silva perde sua mulher, Laura, e eis que a engrenagem lírica que norteia o livro surge em sua plenitude.
A morte não era esperada, apesar da idade avançada de sau companheira, e para aumentar ainda mais tristeza, Silva pensava ou assim desejava não precisar ter que viver um dia sequer sem a esposa depois de passarem juntos 48 anos, terem dois filhos, terem sobrevivido tranquilamente os dias em que Portugal vivia sob a ditadura salazarian. Juntos, haviam sobrevivido, e juntos, pensava o nosso querido Silva, haveriam de morrer.
A perda foi dolorosa, sentida com indignação, e em meio a essa melancolia toda, o velho é internado em um lar de idosos em Portugal.
Silva pouco se esforça para se adaptar à rotina do lar e conhecer os outros internos, muito menos abandonar a amargura sentida pela morte da esposa. Falta-lhe disposição para passar a velhice a rememorar bons momentos da vida ou criar novos sem Laura, que esteve com ele por toda a vida, nada mais tinha importância.
No lugar da sabedoria e do respeito que se aplica aos idosos, Silva enxerga o declínio da saúde e a perda das faculdades mentais à noite, ele imagina corvos e outros pássaros negros a atacarem-lhe na cama, atormentando-o. Mas aos poucos, ele passa a construir amizades com alguns dos outros internos, como o senhor pereira, e com médicos e enfermeiros, como Américo e doutor Bernardo.
Os dias no lar se passam assim, observando uns aos outros, adivinhando-lhes as histórias e lembrando as suas próprias, analisando a condição de velho, esperando em um local específico a morte iminente. Mas silva, jamais esquecido da dor causada pela morte de laura, desfia páginas e mais páginas não de lamentação, mas de consciência da perda e da injustiça de ter que se manter vivo quando preferiria não estar:
com a morte, também o amor devia acabar. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutria pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder.
Dentro da feliz idade, silva e seus companheiros conhecem também o Esteves, o mais velho do asilo, prestes a completar 100 anos e personagem de um momento histórico da literatura de Portugal. Diz-se, e eles acreditam, que Esteves é o homem sem metafísica do genial poema de Fernando Pessoa (TABACARIA), causando admiração dos demais por ter convivido na mesma época, e por algumas vezes no mesmo lugar, que o consagrado poeta português frequentava.
A presença destes homens no asilo leva-os a um caminho de reflexões sobre a velhice, o que lhes resta no fim da vida e o que viveram nos tempos críticos da política portuguesa. Embora todo o livro tenha uma carga melancólica marcada pela morte e o medo de morrer tanto no presente quanto no passado narrado por silva -, as conversas desses velhos são animadas, repletas de risos, como se fossem jovens rapazes a praticar traquinagens escondidos. Riam-se da Dona Leopoldina e Dona Marta, duas velhas medrosas e malcriadas do asilo, dos médicos e enfermeiros, da fé de alguns na igreja que silva deixou de ter quando seu primeiro filho morreu no parto e de si mesmos.
"A máquina de fazer espanhóis" é uma leitura emocionante, e uma das suas virtudes é não arrancar do leitor lágrimas ou pena; o enredo jamais parte para o caminho piegas do sentimentalismo useiro e vezeiro em situações do mesmo naipe. É uma emoção fincada na razão, na lucidez com que Silva detalha a sua inconformidade com a morte de laura e sua permanência na memória, como lida com a obrigação de continuar vivo e superar a perda e um passado que lhe marcou como cidadão.
E toda a técnica narrativa de Valter Hugo Mãe só tem a contribuir para a experiência de leitura, a falta de exclamações e interrogações, por exemplo, levam o leitor a se conectar ainda mais com o narrador para compreender a intensidade daquilo que ele narra. Quem virou fã do autor tem sua admiração justificada, pois o romance vale mais do que 5 estrelas.