Gabriel 04/06/2023
Os herdeiros de uma nação sem habitantes
Adotando um estilo de escrita que muito reverencia a prosa de Saramago, o texto do Valter Hugo Mãe aqui abdica de tecnicalidades como a hierarquia das letras maiúsculas e nivela toda palavra a uma altura encolhida, quase curvada em timidez, mas ressabiada e pronta para vinganças silenciosas que chegam sem aviso. Assim, diante de elucubrações que passeiam com passos largos entre mágoa e fascínio, a narração do recém viúvo António Jorge da Silva – e Silva como tantos outros com quem esbarra -, nos despista sempre das iminências lúgubres do seu ambiente novo, um lar de idosos, e também de suas ações fatais contra uma vizinha de quarto.
As longas horas e tédio abrem frestas antes costuradas no passado do nosso Silva protagonista, uma história do exemplar homem familiar português que foi combustível cultural de uma das ditaduras mais longevas da era moderna. A dedicação absoluta aos filhos e a mulher como única verdadeira amiga durante a vida não é um cenário raro, mas sim a exata expectativa de um governo de exceção onde se dissipa qualquer senso de comunidade em prol de uma fantasia muito mais abstrata de nação. Ao se ver sem o amor de sua vida e se sentindo abandonado no leito de morte pelos filhos, Silva redescobre ao longo de vários capítulos e indivíduos múltiplos que cruzam seu caminho neste réquiem crepuscular coletivo.
A princípio parece ao Silva quase uma traição com sua esposa, este resto de vida sem ela, principalmente quando, com espanto, conhece Esteves, um sujeito que alega ser personagem de um dos poemas mais célebres da língua portuguesa escrito por Pessoa. Inclusive Esteves nutre certa mágoa por ter sido acusado de “sem metafísica” tão levianamente pelo poeta, visto que às vésperas de fazer 100 anos ainda se sente um sujeito repleto de alma pelas coisas vividas. Esta possibilidade ao fim de tudo que se experimentou de ainda ser deslumbrado por um encontro extraordinário, participar de uma história contada a tantas mãos, faz ruir segmentos inteiros da muralha que Silva construiu toda sua vida pois acreditava que esta era a maneira de maior retidão moral de ser um cidadão honrado.
Esse isolamento emocional é o próprio ato de herdar Portugal e sua violência disfarçada de cordialidade e, conforme o tempo passa, mais memórias revelam o profundo desgosto de Silva consigo mesmo, levando-o a rebeliões tímidas como se desvencilhar do catolicismo e maltratar uma estatueta de Maria, mas também confessando arrependimentos medonhos, como ter entregue um jovem de oposição política às forças militares. Um jovem que tinha família, Silva pensa, e que se fosse seu filho, tanto faria para proteger. Mas nada tinha a ver com ele além de provocar o desafio de servir à uma pátria mais que satisfeita em deixa-los todos na faixa da miséria necessária para domesticar a todos sem mata-los por inanição. A vida prometida pela moral fascista era a de homens bons – como revela já o título do primeiro capítulo -, pacatos e inofensivos, mas isto só culminou em arrependimentos e solidão para Silva.
Apesar de seu sentimento particular quanto a suas escolhas, o sentimento de inferioridade parece ser herdado também por todos os portugueses nesta narração, a ralé da Europa, o resultado de um povo igualmente desunido e servil. A ironia deste contraste é acentuada na presença de um sujeito espanhol disposto a agredir qualquer um no lar de idosos que duvide dele ser um português típico do Alentejo. Esta imigração mental é desconexa para todos os outros que estão acostumados a um século de portugueses mais sortudos emigrando para sua vizinha espanhola, dispostos a encontrar ali uma verdadeira dignidade. Portugal não cria portugueses, este “arremedo de península” é uma máquina de fazer espanhóis.