Arsenio Meira 17/08/2013
Maigret humano, demasiadamente humano
"Maigret e o corpo sem cabeça" merece deferência.
Poucas vezes li uma história policial como essa. E, pra quem é fissurado em literatura policial, desde os 14 anos, garanto que isso não é pouca coisa.
Pra começo de conversa, no segundo ou terceiro capítulo quase não há dúvidas sobre quem teria esquartejado um homem e jogado os pedaços do corpo no canal Saint-Martin, que acredito ser um dos muitos braços do rio Sena que cortam Paris.
A cabeça do cadáver sumiu, mas também há pouco o que discutir sobre a identidade do sujeito.
Então, ficamos assim antes do meio do livro: sabemos quem é vítima, o perfil de quem matou, quem ajudou a matar e, finalmente, o motivo está mais ou menos delineado. E o mistério, afinal, onde fica?
Misteriosa é a natureza humana. E o comissário Maigret, tão humano que é, torna-se quase impossível tratá-lo como simples personagem de ficção; tal herói existencialista às avessas, ele faz de tudo para conhecê-la um pouco mais a cada investigação.
Os questionamentos do personagem sobre o que pode levar uma mulher comum vinda do interior e um trabalhador comum a matar, esquartejar e degolar são o fio condutor usado por Simenon para se colocar no lugar do outro ser humano.
Maigret passa a investigar não a morte, mas a vida de cada um dos protagonistas do drama, revelando as dores, as angústias, as escolhas, os fracassos e as esperanças de quem não vive como ele, ou, ao menos, ao seu redor no cotidiano.
Um juiz de instrução meticuloso, cumpridor das leis e das normas, é o contraponto para a alma aberta e generosa do comissário. Em outras novelas, esse juiz Coméliau é apenas um burocrata chato que implica com os métodos do famoso policial.
Em "…o corpo sem cabeça", ele encarna o homem que possui carreira, bens, uma vida confortável e julga os outros a partir da sua ótica, da sua poltrona, da sua moral e da sua família “feliz”. Para Coméliau, não há sentimentos, dores ou desespero. Há mulheres pervertidas, homens maus e gente imoral. E ponto final.
Talvez seja exagero do meu coração mole, mas cheguei ao final deste livreto com sensação semelhante aquela proporcionada por alguns clássicos da chamada literatura “séria”.
O título mórbido esconde uma leitura transformadora, bem apropriada para leitores que desconhecem a grandeza da literatura policial.