spoiler visualizarAlle_Marques 24/12/2023
“Uma perturbação chama milhares de outras.”
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“— Estamos todos um pouco loucos, acho. Estamos todos um pouco enlouquecidos…”
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Foi uma grata surpresa, um daqueles livros que a gente começa a ler de forma tão despretensiosa, apenas ler por ler, e se surpreende quando se pegar gostando tanto dele assim, mas admito, pode ser também que a minha falta de expectativas tenha contribuído com esse gostar. Ainda assim, nada tira o mérito da Sarah Waters, ela conseguiu nos entregar uma história fascinante, densa e sinistra, com uma escrita impressionante, bem feita, imersiva e fluida, é fácil imaginar os cenários e se arrepiar com as situações. Foi o primeiro livro que li dela e mal posso esperar pelos próximos.
O livro já possui uma atmosfera sombria e misteriosa, mas isso se intensifica quando estamos em Hundreds Hall, ela É uma personagem e é tão importante quanto qualquer outra, é quando estamos nela que sentimos o clima pesar, sentimos como as coisas ficam intensas, é um ambiente opressor, vivo até, ela tem personalidade, é gótica, triste e sufocante, mas talvez isso seja para combinar com a melancolia da família que vive ali, ou talvez, a melancolia da família seja culpa da casa, difícil saber.
Os Ayres, são personagens muito bem construídos, os três funcionam muito bem, tanto juntos quanto separados, é fácil se apegar a eles, principalmente pelas mulheres, e sentir receio, medo, pelo que pode acontecer, especialmente pela Caroline, personagem que passei a gostar bastante ao longo da leitura. A sensação de que algo ruim pode acontecer com eles a qualquer momento é determinante para nos manter alerta e aprofundar a trama em camadas e mais camadas de tensão e angustia.
Mas é com nosso protagonista, o Dr. Faraday, que as coisas ficam ainda mais intensas. Ele é um narrador não confiável e trabalha no livro como a ancora que mantem os Ayres no chão, no terreno do racional, mas se por um lado desenvolve um apego pela família e faz o que está a seu alcance para ver eles bem, por outro, esse fascínio que ele nutre pela mansão não parece nenhum pouco saudável e pode ter muito mais nisso do que ele, assim como a autora, deixa transparecer.
Se não me engano, o livro inteiro é trabalhado na ambiguidade, em momento algum acontece algo sem explicações, pelo contrário, todos os fenômenos podem, como bem diz o próprio Faraday, ser fruto de algum evento natural, tudo o que acontece na casa e com a família tem uma explicação racional, e é aí que a Sarah trabalha tão bem, ela nos engana nos fazendo crê que estamos lendo um livro sobre eventos sobrenaturais, sobre algo paranormal, quando na verdade nós não temos certeza disso em momento algum. Pode ser que a família “irritou” alguém ou alguma coisa e isso levou a uma presença maligna quem os levou a ruina? Sim. Pode ser que tudo seja consequência de eventos naturais e acontecendo simultaneamente, como a velhice, transtornos mentais, superstições e imaginação perturbada de seus moradores e empregados? Sim também. Pode ser que seja as duas coisas somadas? Claro. Sarah trabalha em cima dessas dualidades e elas funcionam para nos deixar receosos e pensativos, sem saber se as reflexões que tivemos, as deduções que chegamos, estão corretas ou não.
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[...] — Não posso me arriscar! E nem você se atreveria, se soubesse como é. Na noite passada, ouvi barulhos. Achei que tinha alguma coisa na porta, alguma coisa arranhando, querendo entrar. Então percebi que o barulho estava dentro de mim, que a coisa que estava arranhando dentro de mim, tentando sair. Está esperando, entende. [...]
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E sobre tais conclusões, claro que também tive as minhas.
Pra mim o livro claramente não é sobre fantasmas, nem sobre poltergeists ou qualquer presença inumana ou demoníaca, pra mim o livro, e a tal “presença estranha” do título, se referem ao próprio Faraday. A obra não esconde a obsessa doentia que ele nutre pela mansão, embora aborde ela de forma inteligente, que a deixa discreta e quase banal, e é justamente essa obsessão, misturado com fascínio, que acompanha simultaneamente tanto seu crescimento quanto a decadência da família Ayres, é sempre quando o Faraday está por perto que os tais eventos estranhos passam a acontecer ou se intensificam.
Sinto como se a obsessão do Faraday pela Hundreds Hall tivesse se tornado tão intensa que se materializou em algo ruim, algo quase demoníaco, que funciona como uma nuvem escura pairando sobre essa família e se alimentando de toda vida que já existiu ali, mesmo que seu “criador” não se de conta disso.
Até porque, coincidência ou não, foi logo após a primeira visita do Faraday a casa e seu “pequeno furto”, que a família passou a ser atingida pelas tragédias e entrou em declínio, coincidência ou não, os “eventos sobrenaturais” do livro só começam a acontecer após o Faraday retornar a casa e passar a frequentar ela, coincidência ou não, era ele quem estava próximo a casa na noite em que a Caroline “se acidentou”, coincidência ou não, isso aconteceu logo após ela tomar a decisão, finalmente, de vender a propriedade, decisão essa que não o deixou nada feliz e que provavelmente levaria ao fim da Hundreds Hall, além disso, é ele quem vive insistindo na “inocência” da mansão e apoiando a permanência da família na casa, mesmo não tendo motivos pra isso e sendo testemunha de como o lugar adoece o psicológico de seus moradores.
Enfim, pode ser tudo apenas uma grande coincidência, pode ser que não, eu prefiro acreditar que não.
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“E talvez haja um limite de sofrimento que o coração humano pode suportar.”
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10° Livro de 2023, 15ª Resenha de 2023
Desafio Skoob 2023