Flávia Menezes 16/07/2022
DR. FRANKENSTEIN, SEU PACIENTE TE AGUARDA NO... ?SIMITÉRIO?!
?O Cemitério?, do mestre Stephen King, publicado em novembro de 1983, é um livro que busca trazer à tona o tema da perda e do luto. As notas deste livro, aqui no Skoob, são bem altas, e muitas pessoas com quem conversei, tiveram experiências riquíssimas com ele. E eu pude ver cada um desses motivos enquanto lia. Porém, devo dizer que a minha experiência foi bem negativa com essa história, e o motivo foi bem pessoal.
Eu cheguei a pensar que o fato de ter vindo de três leituras anteriores que me arrebataram tão fortemente, de outros autores também consagrados (?E o Vento Levou?, ?Vidas sem Rumo? e ?O Som e a Fúria?), fosse o motivo pelo qual esse livro não tenha me tocado como tocou a outras pessoas. Mas, ao iniciar outra história do King, percebi que essa não é uma questão de ressaca literária. E tenho que dizer, muitas vezes, durante a leitura deste livro, eu me senti até entediada. E eu sei exatamente o motivo pelo qual tudo isso se deu.
Logo no começo da história, King nos apresenta seus personagens principais: a família Creed. Marido, esposa e dois filhos, sendo eles uma menina de 5 anos, e um menino, ainda bebê. Com o foco voltado para o olhar do Louis, o marido/pai, mal a história inicia e já sentimos sua frustração e sua vontade de se afastar da família. E esse incômodo que o autor já denuncia logo de entrada, vai aumentando e se comprovando conforme a leitura avança.
Louis é um homem bom, porém bastante imaturo, emocionalmente distante, e que vive uma grande frustração em uma relação de casal onde esse homem nunca reage, mas se submete a todo tipo de humilhação e rebaixamento feito por essa esposa.
Eu sei que tudo isso pode até parecer muito pesado (e até exagerado!), mas é o que o livro escancara a todo instante. O que até me fez questionar se tudo isso foi proposital, ou se o King criou toda essa problemática aleatoriamente, e sem perceber, desenvolveu uma família (especialmente o casal) disfuncional e totalmente sem qualquer intenção.
Existe uma cena inicial em que a filha pergunta ao pai sobre a questão de nunca ter escolhido uma especialização, e nesse momento, Louis apenas pensa, mas tem em sua mente a clareza do quanto ele se sentiria entediado se seguisse uma área específica. Isso já revela muito do personagem, porque a necessidade contínua de diversidade, seja no que for (no trabalho, nas relações afetivas, ou de aventuras) denuncia uma forte imaturidade.
Existe uma diferença entre querer ser desafiado constantemente, que tem a ver com a necessidade de superação, de se ter necessidade de viver coisas novas o tempo todo. Nesse último caso, a pessoa não quer o novo para se superar, para se desafiar. Mas porque ela se entedia facilmente. E quem se entedia o tempo todo é criança, que ainda não tem repertório para lidar com atividades e situações meramente rotineiras. Que ainda não tem como mergulhar e se comprometer inteiramente com algo ou alguém. Mas que vive à superfície, porque ainda está tendo a sua personalidade desenvolvida.
E essa imaturidade combinada com as atitudes dessa esposa, só completam o cenário de um casal em uma relação fracassada pela falta de comunicação, e do excesso de mágoas e de situações mal resolvidas.
Rachel é uma esposa castradora, que passa o tempo todo diminuindo o marido de todas as formas. Ela não confia em absolutamente nada do que ele diga como médico. Ela não confia nos diagnósticos que ele faz, e nem confia em revelar a ele um segredo sobre seu trauma com a morte da irmã, vivenciado há mais de 20 anos. Isso, com o acréscimo de que seu pai a deserdou e rompeu com a filha logo que ela decide se casar com Louis, por considerar que ele arruinou a vida dela, fazendo-a desistir de sua vida para trabalhar exaustivamente para ajudá-lo a pagar a faculdade, vai mostrando que todo esse sacrifício resultou em uma cicatriz enorme na relação.
Cicatriz essa que revela uma ligação bastante tóxica da Rachel com os pais. Em todos os momentos em que ela se mostrou magoada e ressentida com o marido, o diminuindo não tanto como homem, mas principalmente na carreira que ela o ?ajudou? a construir, mostra o quanto ela se mantém leal ao pai. Porque cada vez que ela o faz, é ao pai que ela está dando razão. A tudo aquilo que ele disse a ela, e ela não quis ouvir. Só que... ela ouviu. E ouviu muito bem!
E o fato de Louis não fazer nada em relação a isso, só demonstra sua fraqueza enquanto ser humano. Mas verdade seja dita: quem muito recebe em uma relação, acaba adquirindo uma dívida enorme. E esse peso do desequilíbrio em receber mais do que se consegue dar, só causa mágoas, ressentimentos, e é aí que a relação se desgasta e se quebra.
Acho o King um escritor muito sagaz por conseguir construir algo assim, tão bem conectado, mesmo que seja disfuncional. É brilhante observar como esses elementos se encaixam, e vão revelando uma relação tão próxima do real. Afinal, nem todos os casamentos resultam em ?e viveram felizes para sempre?. Alguns trazem marcas profundas, que precisam ser olhadas e trabalhadas para ver se é possível que algo seja reconstruído, ou se o laço foi rompido de forma permanente. Nesse ponto, continuo admirando demais a capacidade do King em ser um mestre em construir personagens tão complexos assim.
Voltando à família Creed, os filhos são o verdadeiro termômetro de como a relação é altamente disfuncional. Eles vivem adoecendo, e possuem uma irritabilidade bem excessiva. Esse constante mal-estar, tanto físico quanto psicológico, demonstra o quanto as crianças sofrem por se sentirem desprotegidas. E nisso, volto a dizer, King é mestre. Porque seus personagens mostram algo que acontece muito na vida real. Quando a relação dos pais não vai bem, olhar para os filhos nos dá a noção exata para ver como as coisas verdadeiramente estão.
Saindo um pouco do ponto da disfunção familiar, e entrando no tema dessa história, sobre a forma como cada um irá lidar com o luto, eu preciso dizer que essa parte realmente me incomodou. Não vi luto algum nesse livro. Não vi os estágios do luto acontecendo. Vi apenas o terror da história se revelando, como um elemento para impactar, para aterrorizar o leitor.
Essa obsessão que o Louis demonstra em poupar a filha ou a esposa a lidar com a morte, primeiramente de um gato, e depois do filho/irmão, me mostra ter menos a ver com superproteção, mas muito mais com uma fuga. Do que? Das constantes lamentações, de ser responsabilizado por tudo o que dá errado, e ainda ter que ser a fortaleza delas. A sensação que dá, é que ele não tem a chance de expressar seus sentimentos (dor, raiva, tristeza, frustração). E com isso, eu sinto que as decisões que ele toma, tem menos a ver com o sentimento de não saber lidar com a perda, e mais com o fato dele querer ?dar uma bola dentro?.
De ser visto, pelo menos uma vez na vida, como alguém que fez algo realmente louvável, e de ser reforçado por isso positivamente. Senti que ele queria muito mais ser visto como o salvador, do que necessariamente de querer trazer o filho de volta à vida por saudade, por não querer perdê-lo. O que mais uma vez revela o quão imaturo Louis é, a ponto de ter necessidade de ser reforçado, por não saber lutar para ser visto de forma mais respeitosa pela esposa, e pelas outras pessoas.
Apesar de não ter gostado tanto da história, porque para mim, até umas 100 páginas toda essa relação já estava bem consolidada, essa não é uma história ruim. E preferi detalhar cada ponto em que a história me trouxe algum tipo de incômodo porque o motivo pelo qual essa história não funcionou para mim, foi exclusivamente pessoal.
E eu sei que talvez pareça um tanto exagerado da minha parte analisar dessa forma personagens fictícios. Mas a verdade é que essa é a beleza das histórias: o quanto elas se aproximam do real. E nesse ponto, todos esses elementos saltaram diante dos meus olhos, e não houve como ignorá-los, nem muito menos deixá-los de fora dessa resenha.
Em ?Love ? A história de Lisey?, King fala com maestria sobre o luto. Nesta, confesso que não vejo que a mensagem final tem tanto a ver com luto. Acho que ele (King) atirou para um lado, mas acabou acertando em outro. Em especial, ao meu ver, nos problemas que surgem nas relações de casal, e no quanto delas podem surgir feridas bastante profundas, que quando não olhadas, trabalhadas, se traduzem em inúmeras disfunções familiares, e doenças (físicas e psicológicas) dos filhos.
E esta é a mensagem que eu quero deixar com essa resenha: da importância de se olhar mais profundamente para os detalhes que surgem nesta história. De ir além dessa temática proposta do luto (que novamente reforço, não vi aqui). De ousar e ver muito mais longe, mais profundo. Afinal, uma história tem potencial para falar com cada um de nós de maneira diferente. E esta, falou comigo desta forma. Com uma verdade nua e crua.