Fabio Shiva 12/11/2021
"Quero um homicídio!"
Não é exagero dizer que Agatha Christie experimentou praticamente todas as combinações possíveis do romance policial clássico, do tipo “Whodunit” ou “Quem matou?”, que consiste em um jogo onde o leitor é desafiado a solucionar o mistério antes que a resposta seja oferecida ao final do livro. Mais que experimentar as possibilidades de solução do romance de mistério, Agatha Christie foi a criadora de várias delas. Não chego a enumerar essas geniais invenções de Agatha, mesmo sem citar as obras nas quais ocorreram, por respeitar demais as sublimes alegrias desfrutadas pelo leitor de romances policiais e por não querer incorrer em sua ira santa, pela mais leve sugestão de spoiler!
Que não será cometido quando eu digo que faltava talvez uma possibilidade a ser experimentada, a qual Agatha resolveu dar vazão justamente em “A Terceira Moça”: que tal um romance policial onde o elemento original esteja justamente na dificuldade de descobrir onde e como foi cometido o homicídio?
Esse é o desafio que Hercule Poirot precisa enfrentar e que o leva quase ao desespero:
“E eu só quero um homicídio... um simples homicídio. Já estou acreditando que ele só ocorreu dentro de um cérebro desequilibrado!”
Em outro momento do livro ele confabula com sua parceira de muitos mistérios, a escritora Ariadne Oliver, que não deixa de ser um alter ego da própria Agatha:
“Façamos a nós mesmos a pergunta, madame: que homicídio? Quem foi morto? Onde foi? Por que alguém foi morto?”
Mas essas perguntas demoram a ser respondidas, o que faz o famoso detetive belga perder a paciência:
“— Quero um homicídio! — proclamou Poirot.
— Quem o ouve falar, pensa que está querendo beber sangue!
— Ah, eu procuro um homicídio e não encontro um homicídio. É irritante, por isso, peço-lhe que pense comigo.”
Quando consideramos que esse diálogo ocorre na página 135 (de um total de 226), é inevitável pensar que parte dessa irritação que Poirot sente seja compartilhada pelo leitor. Ao menos, foi o que aconteceu comigo. Achei a leitura arrastada e levei bem mais que a minha média de dois ou três dias para terminar de ler um livro de Agatha Christie.
Eu fui atraído para esse livro (que li pela primeira vez há muitos anos, não conservando dele nenhuma recordação) por um detalhe curioso. Ao ler o ótimo “Cem Gramas de Centeio”, protagonizado por Miss Marple, achei bem interessante o personagem do inspetor Neele, e achei que ele merecia figurar em outros livros de Agatha. Na pesquisa que fiz, contudo, só o encontrei de volta muitos anos depois, já promovido a Inspetor-Chefe da Scotland Yard, agora como coadjuvante de Poirot. Contudo a promoção, ou talvez as décadas que passou enfurnado na gaveta, aparentemente tiraram de Neele todo o seu carisma, e em “A Terceira Moça” ele quase que se limita ao papel de fornecedor de informações para Poirot, sendo que no mesmo livro já temos esse papel sendo desempenhado pelo Sr. Goby, um tipo meio bidimensional que tem a mania de sempre olhar para algum objeto inanimado quando está fornecendo suas informações no melhor estilo Deus ex machina.
Fora o mistério em si, a parte mais interessante da história é ver Agatha expressando, através de Poirot, os desafios da velhice e o choque de gerações com a juventude daquele louco ano de 1966, cheio de palavras inventadas como “Beatles”, “beatnik” e de tantas outras coisas que, aos olhos da terceira idade, pareciam totais absurdos. Desse conflito com o novo saem algumas frases bem interessantes:
“Não se pode esperar cabeças experientes em cima de ombros jovens.”
“As pessoas não gostam de sofrer, nem de sentir que são culpadas por alguma coisa.”
Em resumo: “A Terceira Moça” não chega a ser um livro ruim, mas a autora certamente escreveu ao menos uns cinquenta outros bem melhores. E viva Agatha Christie!
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