Marc 13/11/2021
Muitos acreditam que a morte é o fim de tudo, que não há resquício de nós em lugar algum depois que nosso corpo se desfaz. Diante de uma possibilidade dessas, como devemos lidar com as vicissitudes da vida? Como devemos encarar a vida, portanto? Como uma sucessão de tentativas de obter prazer, de afastar a dor e o sofrimento ou como a chance de construir algo, de deixar algo depois de nossa morte, suavizar a vida daqueles que cruzam nosso caminho?
Pois é essa a questão que pode ser pensada a partir dessa HQ. O desfecho da história é óbvio, basta um pouquinho de atenção para saber qual será o final. E fiquei até bastante decepcionado, porque esperava ao menos um pouquinho de criatividade nesse ponto, mas não vou criticar por essa razão. O que eu gostaria de assinalar é o tremendo descaso com a vida dos outros que Julien, o protagonista, apresenta e que vai ser o verdadeiro fio condutor de sua vida.
Ele pula do trem que o levaria à guerra e que seria morte certa, ou, talvez, sofrimento psicológico e físico. Julien sabe que não vai tirar nada de positivo dessa experiência, por isso, decide não participar. Logo de cara, antipatizei com ele, porque mesmo a morte sendo quase certa, tendo uma possibilidade altíssima de acontecer, uma pessoa madura jamais deixaria de lutar para tentar libertar aqueles que ama. A partir disso, já sabia que estava diante de um personagem real, comum, irresponsável e covarde, mas que apresentava traços de simpatia para disfarçar sua falta de comprometimento com a vida das pessoas. Ele não pensa jamais em aproveitar o tempo que ganhou, a chance de fazer alguma coisa; só pensa na garota que ama e não consegue deixar de bisbilhotar a vida das pessoas.
Julien teve a oportunidade de ver seu próprio enterro e notar que a vida na cidade não mudou nem sequer uma vírgula com isso. Seria um choque para ele, mas só se estivéssemos diante de uma personalidade de verdade, não de um moleque oportunista (ele mesmo admite isso ao dizer que viu a chance de pular do trem e aproveitou). Há um “rival” pelo amor de Cecile, Paul, que é médico e ajuda a resistência secretamente. Julien reconhece estar diante de uma pessoa digna de admiração e sente que ele teria tudo para lhe roubar a garota, mas não é capaz de mudar sua atitude. Enfim, ele só entende de salvar o próprio umbigo e nada mais. Julien pôde ver como deixar uma marca no mundo, que seria lutar para tornar a vida das pessoas a seu redor mais leve, mas prefere se omitir de todas as situações e vamos notando que tanto faz se ele tivesse morrido no começo da história ou no final, ele não foi capaz de construir uma vida concreta. Quando sua tia é internada, nem mesmo cuida de seu cachorro. Veja o nível de comprometimento que ele tem com os outros... Ao contrário, sai a esmo pela cidade procurando outro abrigo e vai atrás de Cecile, se comportando como um menino mimado e insuportável. Nesse ponto da história, ele abusa do acolhimento da garota e se mostra um autêntico canalha. Todos sabem que ele não é confiável, que não se pode contar com ele para absolutamente nada e o único que o faz termina se dando mal. Embora a história não esclareça se ele tem participação nesse caso, paira uma certa dúvida logo depois. Julien é tão inconsistente que apenas passa, talvez como a luz que entra pela janela e vai se deslocando, sem que ninguém note, até que a luz já não exista mais e a noite caia. Ele não é nada.
Para reforçar, vale a pena repetir: ele viu sua morte e o quanto a vida que teve até aquele momento era tola e havia sido desperdiçada, mas não foi capaz de mudar seu rumo, preferindo se afundar em autopiedade, na dependência das outras pessoas, sem lhes entregar nada em troca. Uma cidade pequena, que vê um jovem morrer, mas que é tão insignificante, tão desprezível, que não muda absolutamente nada. Julien é o protótipo de nossa época, pois substitui a responsabilidade da vida pela malandragem, pela simpatia, pelo jeitinho, para conseguir que os outros lhe sirvam — e todos arriscavam a própria vida para agradar a majestade, mas ele era insaciável e ia aumentando cada vez o círculo de pessoas que colocava em risco. Dá para perceber que ele está morrendo de medo quando aviões sobrevoam a cidade, porque começa a perceber que a guerra está chegando.
Paradoxalmente, ele se ocupa bastante dos informes sobre a guerra. No fundo, deseja que o conflito termine antes que a água bata em sua bunda e ele tenha que se mexer novamente. Prova de sua completa inépcia em relação à realidade é o devaneio sobre viajar de bicicleta — isso num estado de sítio, com a França ocupada por nazistas.
Trata-se, portanto, de um protagonista covarde, cínico, oportunista e insensível diante do sofrimento alheio. Tudo isso é muito bem construído por Gibrat. E o mérito da história aparece nesse ponto. Tanto que muitos leitores não são capazes de perceber a ironia do enterro dele no começo da história. É fácil acreditar naquilo que ele diz e pensa, pois é cativante, mas a história é uma crítica, porque a resistência à ocupação militar na França é um assunto muito sério e até hoje se critica os que colaboraram ou se omitiram. Tanto que o autor tem outros álbuns sobre o período, que devem ser lançados algum dia pela mesma editora, assim espero. O que demonstra que o assunto merece tratamento detalhado para ele. O que vemos nesse caso, espetacularmente detalhado, é o quanto uma cidadezinha pequena é abalada de forma diferente pela guerra. Não há corpos, bombas, aviões, o que nos vem à mente quando pensamos em guerra, mas sim milícias, resistência, as pessoas tentando viver normalmente, mas sendo profundamente afetadas. Diante da morte daqueles que amamos, não podemos ficar impassíveis, nem que reagir seja morte certa. Mas, se houver uma única chance de salvar alguém, é preciso assumir totalmente os riscos, ser adulto, ser responsável. Julien, infelizmente, era só um moleque, que não conseguiu ver a amplitude do que estava vivendo.