Eduardo 21/09/2020
O grão mais vivo
É o primeiro livro do autor que eu leio, apesar de já ter lido antes alguns poemas curtos, além de Morte e Vida Severina.
Esta antologia me parece cumprir bem o que se propõe: é uma antologia escolar. A introdução dá algumas chaves de leitura para os poemas de João Cabral em linguagem bastante didática e a própria organização em três grandes grupos - "Figuras e paisagens", "Nordeste, seus heróis e seu destino" e "O poeta" - ajuda a guiar a leitura. Por outro lado, senti falta da referência aos livros originais em que cada poema foi publicado. São, no total, 4 poemas longos ("O cão sem plumas", "O rio", "Morte e vida severina" e "Auto do frade") e 26 poemas curtos.
Quanto aos poemas, João Cabral ocupa realmente um lugar singular dentro da poesia brasileira. Ele parece mesmo inaugurar uma linhagem de poesia mais ligada ao senso de construção e ao afastamento de muitos elementos da poesia associados ao Romantismo, como a noção de poesia confessional, a fluidez musical dos versos e certo uso das metáforas. Isso irá estar presente de modo marcante nos versos dos poetas do Concretismo e dos que foram influenciados por ele.
Há de se deixar claro que "Morte e vida severina", seu poema mais famoso, desvia significativamente dessas características acima. Esse poema escrito por encomenda não está entre os favoritos do autor, e possui mais uma intenção comunicativa imediata, o que revela bastante do apelo que o texto tem. Li esse texto a primeira vez nas aulas de literatura do ensino médio e ele me deixou bastante curioso, gostei do ritmo da leitura e das imagens, da construção retórica que ele vai desenvolvendo nos versos, mas numa linguagem acessível. Me tocou ler agora, nesse período de pandemia, o trecho em que dois coveiros discutem as formas como morrem as pessoas nos bairros ricos e nos bairros pobres. Eles possuem um ponto de vista privilegiado sobre a desigualdade em um ponto sensível. Se a morte é algo comum a todos, independentemente de bairro, apenas alguns possuem direito a luto e a memória, outros não possuem isso. Por aquilo que não se tem após a morte fica ainda mais claro aquilo que não se tem em vida, ou melhor, o que é degradado em vida. Infelizmente, com a pandemia aumentando ainda mais as desigualdades sociais, e o aumento recente da fome no país, o poema volta a ganhar atualidade.
Nesta linha mais comunicativa está também o poema "Auto do frade", que narra o cumprimento da pena de morte de Frei Caneca. Este poema, apesar de algumas boas imagens e de trabalhar bem a tensão que antecede a execução da pena, achei bem chatinho e alongado. Gostei muito mais do João Cabral mais conciso.
Entrando nos finalmentes, que são esses poemas mais concisos e "construtivistas" do João Cabral, ali parece que realmente estão os poemas mais inventivos do poeta. Os poemas dele (ao menos os selecionados nessa antologia), em grande parte, parecem seguir uma forma que se repete: procuram "definir" ou "dar a ver" algo, como diria o próprio poeta, partindo de imagens e comparações simples e desenvolvendo-as ao longo dos versos, trazendo mais complexidade e interesse ao que se apresenta quase que de modo banal no início do poema. Apesar de simples - ou talvez o adjetivo mais adequado seria "claro" - o poema chega a construir imagens inusitadas e com grande força de persuasão do leitor. Tenho a impressão lendo alguns desses poemas de que é como se o escritor tentasse convencer o leitor com uma grande força de persuasão - e eu não conseguiria discordar de um poema dele.
Dito tudo isso, acho que seria necessário também pensar se essa poesia mais "clara", mais da comparação que da metáfora, não acaba por perder algo ou ser menos prazerosa. No poema "Catar feijão" (que, infelizmente, não está presente nessa antologia), o poeta fala que procura a palavra "pedra", "de quebrar dente". Às vezes é necessário confrontar a dentição do leitor, e isso pode ser prazeroso ao seu modo, mas tenho a impressão de que é uma poesia para momentos bem específicos porque - discordando do poeta - nem sempre "a pedra dá à frase seu grão mais vivo".