spoiler visualizaraline 11/06/2011
Cachalote
.: A estrutura do livro é simples de descrever: cinco histórias, cujos protagonistas são todos homens muito diferentes entre si, que acontecem independentemente. Um não passa pela história do outro, nem de leve, nem forçando a barra. A unidade do livro, o que amarra as histórias mesmo, tem mais a ver com os dilemas, os assuntos, as complicações em que cada um deles se coloca – nisso, sim, eles se esbarram um pouco. A vida cotidiana, amor, sexo, morte, amizade, solidão, arte, trabalho, cobranças, expectativas. A vida, naquela bagunça de dar dó. Se tomadas isoladamente, as histórias dão conta do recado, cada uma delas. Criam sentido, dialogam com a gente, são interessantes, provocativas. Mas há um elemento externo, meio non sense, cujo estandarte é a tal da baleia cachalote, que inscreve essas histórias, juntas, numa esfera lírica e desestabiliza, inclusive, nossa compreensão da normalidade da vida dos personagens. E aí o livro passa de ordinário a excepcional, de cotidiano a mágico. A cachalote aparece no começo e no fim do livro, em duas passagens que parecem fazer uma espécie de prólogo e epílogo dos capítulos nos quais veremos os 5 personagens serem apresentados e desenvolvidos. Esse livro acertou em cheio, comigo, porque ele toca figuras que já me são caras. A baleia, que tem na cachalote seu arquétipo, é uma delas. Acho fascinante como esse animal, todo superlativo, imenso e pesado, simplesmente parece a coisa mais leve e suave quando está no mar. O “prólogo” do livro, então, traz isso com força. Tem uma velha, grávida, sozinha, numa mansão. Ela vai dar um mergulho e tem uma cachalote na piscina. Elas se aproximam, cuidadosas, se tocam. E só. Veja bem. É o meu acervo que eu to trazendo aqui. Velha na literatura, pra mim, chamará sempre a velha intratável da Clarice. É quase imediata a relação, na minha cabeça. Velha, punho cerrado, bolo seco, ódio aos descendentes. E aí, logo de primeira, Cachalote faz esse deslocamento poético na minha cara e traz uma velha muito velha e grávida. Doce, viva, plena. Com uma cachalote mansa e cúmplice, descendente direta da ameaçadora Moby Dick, nadando numa piscina e fazendo, assim, o segundo deslocamento poético em menos de 3 páginas. Vi várias referências a devaneio, sonho, delírio da velha nos comentários por aí. Não vou seguir esse rumo, não. Uma velha grávida tocando uma cachalote com a ponta dos dedos numa piscina é coisa demais pra eu condensar num sonho. Eu acho até tentador fazer isso, já que as histórias que seguem não trazem nenhum traço de irrealidade. O máximo que elas carregam, como eu disse, é o estranhamento próprio da vida comum, bagunçada, imprevisível, complexa. Mas meu entendimento dessa dupla leva minha leitura pra outra banda, mesmo.
.: Aliás, se eu defino a velha e a baleia como guias de um lirismo mágico, diminuo também o teor melancólico das narrativas no geral. Como os protagonistas estão em situações conflituosas (condição necessária pra que haja uma história, diga-se), li muitas vezes a palavra melancolia pra descrever o tom da obra toda. Mas melancolia não é tristeza. Podem se parecer, essas duas, mas nunca se igualar. Cachalote tem uma toada triste, é verdade, e tem um movimento melancólico, mas não faz disso seu mote, eu acho. É que melancolia tem a ver com perda, com um tipo de perda que impacta de tal maneira uma pessoa que ela é incapaz de tocar a vida. O sujeito melancólico, em última instância, perde a si mesmo, é fragmentado, quebrado, está preso a um episódio violento e arrebatador do passado. A gente até pode minimizar aqui e esticar um pouco o conceito acolá, e lembrar que gente muito séria já disse que existe uma certa melancolia na experiência da cidade moderna que dispensa, inclusive, o tal do episódio violento. Mesmo assim, acho que não é exatamente esse o caso das personagens ou do livro como um todo porque no final os personagens reagem e, de algum modo, superam as perdas que sofreram.
.: Eu disse cinco protagonistas: um ator, um escultor, um praticante de kinbaku, um escritor e um playboy. Em ritmos e intensidades diferentes, eles atravessam boa parte do livro espreitando o abismo e a exaustão bem de perto. Se eu for comentar a história de cada um deles, o post fica excessivamente grande, então é melhor comentar só uma. A história do cara do kinbaku é minha preferida, eu acho. É um cara normal, o Vitório, trabalha numa loja de ferragens, toca a vida na boa. Ele curte amarrar as mulheres pra trepar. Aí ele conhece uma menina especialmente linda – cujo rosto a gente nunca vê. A Lara. Eles se apaixonam, etc. Logo de começo ela diz que é muito frágil, que é pra ser tratada como se fosse de cristal. E ele fica nessa de trata-la feito princesa e nunca menciona o kinbaku, embora tenha vontade porque é o lance que ele curte fazer e tal. Só que a Lara descobre, fica fascinada e quer ser amarrada. Ele amarra, mas ela é frágil mesmo. Se machuca toda hora. O recurso gráfico que eles encontraram pra mostrar é lindo. No corpo dela ficam marcas de vidro quebrado. Nos pulsos, nos tornozelos, nas coxas, no queixo. Me causou uma impressão forte. Sei que o cara vai apavorando, e ela vai ficando irritada com o pavor dele. Porque ele a protege à revelia dos pedidos dela. Lara insiste, desafia, provoca, protesta. E ele fica perdido no meio disso. Ela vai “quebrando” aos poucos, a cada vez que é atada, mas vai curtindo mais e mais. E ele nunca consegue trepar com ela direito, por medo de machucar. A crise que isso desencadeia no relacionamento é enorme. O Vitório fica tentando pautar o jogo, achar o limite dela. Só que o limite dela é dela. Ninguém lhe tira. Ele fica com muito medo de quebra-la e, ao mesmo tempo, com medo de perde-la. Porque, claro, a Lara não quer ser o bibelô dele, ela quer ser um “vaso quebrado”, deseja o Vitório e o sexo dentro das regras do jogo dele. Essa incompatibilidade entre o cuidado e o fetiche se torna o abismo do Vitório, o inferno mesmo.
(...)
.: O gran finale é com a velha, na praia. Tem um menino com ela, que é o filho, e ele está brincando com uma baleia miniatura. Não tem fala nenhuma nas partes da velha. Ela só está lá, olhando o menino, e o menino olhando o mar. Então ele levanta, abraça a velha, vai pra água e não volta. Ela recolhe as coisas, a baleia de brinquedo inclusive, dá as costas pro mar, e vai embora. Fico só eu na praia, olhando, a partir do mar, a velha que foi embora. Não é tão forte quanto uma cachalote na piscina, mas a criança no mar é uma imagem muito bonita também. Ela que encerra, numa inversão simétrica, se é possível pensar assim, a cena inicial da piscina. Por isso eu recuso que seja sonho ou delírio da velha. Na verdade, eu acho que não é nem interessante investigar de onde vem essa velha e a baleia porque pra mim a presença delas não tem nada a ver com mistério, tem a ver com lirismo mesmo. E às vezes trata-se simplesmente de aceitar o elemento extraordinário sem fazer muita pergunta, apenas deixar que ele sozinho determine o fôlego que dará ao resto da história. E eu disse “fôlego” deliberadamente. Se tem uma coisa que o mundo sabe sobre a cachalote é que ela mergulha mais fundo e por mais tempo do que qualquer outro animal. E que ela sempre volta. Paulo me assoprou que a baleia talvez seja a única coisa real. Não posso concordar em conferir realidade à baleia. Certamente ela redimensiona as experiências dos personagens, mas não necessariamente compete com eles em concretude. Eu acho que a cachalote é aquilo que não permite que as 5 narrativas sejam restritas a um realismo estilizado, como um lirismo das coisas triviais. Não sei, tou improvisando muito nessas expressões aí. Ela, a baleia, coloca as histórias deles em outro horizonte, o horizonte dela. Que é imenso e impossível e belo. Eu aceitei a cachalote na piscina assim como aceitei os 5 personagens mergulhando o mais fundo que podiam, quase morrendo de falta de ar. Mas eles voltaram também. Um pouco exaustos, um pouco feridos, um pouco entristecidos, mas capazes e plenamente inseridos num mundo de possibilidades, aberto, instável, complicado, intrigante – tipo o mar.
texto na íntegra aqui: http://godotnaovira.wordpress.com/2010/08/24/cachalote/