spoiler visualizarsteplr 30/12/2023
Lolita
Minha perspectiva de Lolita envolve a ideia de que Humbert, apesar de consciente dos próprios atos e vagamente ciente do peso deles, para ele não era clara a proporção disso. Lolita era, para ele, um objeto de adoração, admiração e de satisfação, porém ele não se interessava em quem ela era para além dele. Durante vários momentos no livro Humbert demonstra sua falta de atenção e cuidado com ela, ignorando as birras, os choros, os momentos de vulnerabilidade e rebeldia que denunciavam a dor em que ela estava vivendo. Nas últimas páginas do livro, na reta final dessa jornada, ele começa a reconhecer tudo isso e compreender a proporção do que realmente ele foi para ela, começando a percebe-la como de fato uma pessoa, um indivíduo, algo a mais do que, como o próprio denomina sua namorada. Um trecho que esclarece isso é: "decidi com firmeza ignorar o que não tinha como deixar de perceber, o fato de que era para ela não um namorado, não um galã sedutor, não um companheiro, nem mesmo exatamente uma pessoa, mas só dois olhos e um palmo e meio de carne entumescida ? para só mencionar o mencionável"
Uma perspectiva que entra em oposição à muitas outras interpretações que vi do livro é a ideia de que Humbert ou até a própria narrativa que Vladimir guiava possuísse uma conotação de culpabilização da Lolita, responsabilizando-a pelos acontecimentos do livro, entretanto vejo em algumas páginas o próprio Humbert tirando essa responsabilidade dela e traduzindo a personagem como de fato uma criança, um trecho que deixa isso bastante explícito é onde ele diz: "ela encarava o ato sexual apenas como parte do mundo secreto dos jovens, ao qual os adultos não tinham acesso" deixando clara a ideia de que Lolita não percebia a dinâmica sexual da mesma maneira que um adulto, como ele. E mesmo quando Lolita revela a Humbert suas descobertas sexuais no acampamento, ele diz "nem o mais ínfimo vestígio de pudor detectei naquela linda jovem ainda em formação, que a escola mista moderna, os maus modos da juventude, a atividade criminosa de exploração das colônias de férias e assim por diante haviam depravado total e irremediavelmente".
Não dá para perceber de maneira óbvia através dos olhos de Humbert qual a visão de Lolita sobre suas relações mas a partir de um certo momento fica notório que o sexo começa a ser um compromisso e apesar de não ser narrado de forma aprofundada sobre isso acaba podendo ser percebido através de alguns trechos, como por exemplo os que ele relata relutância de Lolita à ceder por suas carícias sexuais ou quando passa a convencê-la através de um sistema de troca por realizações e até dinheiro, outra ocasião marcante foi quando Dolly ficou doente "Primeiro ela teve uma febre alta, e não tive como resistir à extraordinária caloricidade de deleites insuspeitados ? Venus febriculosa ?, embora fosse uma Lolita muito enlanguescida que gemia, tossia e estremecia em meus braços". Esses e entre outros momentos denominam que a relação entre os dois já estava envolvendo momentos de violência, colocando Lolita na posição de ter que aceitar essas relações mesmo que em momentos de vulnerabilidade, como quando estava doente. Esse ponto inclusive é muito interessante de se aprofundar pois algo que senti no livro é que analisando os fatos de forma isolada, é possível notar o tamanho do peso e problemática que a situação envolvia e o quão triste era e foi a vida de Lolita, algo que pela narrativa de Humbert não fica tão claro.
Um ponto então para se observar é a maneira como Humbert se autodescreve e a forma romantizada que apresenta o reconhecimento de si próprio como um pedofilo, introduzindo portanto, logo nas primeiras páginas, uma história pessoal de quando ainda era um jovem, como forma de justificar suas inclinações pedofilas. Isso eu considero um ponto chave no livro pois apesar de reconhecer suas próprias falhas ele parece nunca compreender as proporções delas para com o outro, o que nos leva novamente ao ponto que abordei no início, onde ele não enxergava a Lolita como quem de fato era mas sim pelo viés fetichista que o mesmo a interpretava. Um momento que revela isso é quando ele, já no final do livro, após rever Lolita, começa a refletir sobre a mesma e relembra uma fala dela com uma amiga ?Sabe, o pior da morte é que deixa você completamente só?; [...]não sabia de nada sobre o que pensava a minha querida, sendo bastante possível que, por trás dos horrendos clichês juvenis, existisse nela um jardim e um recanto à meia-luz, e o portão de um palácio ? regiões adoráveis de luz branda que por acaso eram lúcida e absolutamente interditadas a mim, com meus farrapos poluídos e convulsões infelizes."
Sinto a necessidade de me aprofundar na percepção das violências e no peso que realmente foi tudo isso para a Lolita. A princípio é muito importante entender que ela era apenas uma menina quando tudo começou a acontecer, apesar da rebeldia que apresentava com sua mãe ela era apenas uma criança crescendo e aprendendo sobre o mundo, se ver de repente sendo obrigada a largar o acampamento com suas amigas, sua cidade, sua casa, os conhecidos de anos para percorrer estradas e hotéis na companhia de um homem cujo convívio foi mínimo e se vendo na posição de constantemente ter que atender aos seus pedidos sexuais é algo realmente grandioso, sem nem sequer ter tido tempo de digerir a perca da própria mãe. No decorrer da trama é possível notar o desgosto de Dolly à sua própria vida através de suas rebeldias e eventuais discussões com H.H. onde ofensas como brutamontes eram proferidas. Um outro momento interessante de trazer é no dia após terem tido a primeira relação, onde Humbert fala sobre a mudança no estado de humor de Lolita, parecendo mais fechada e séria e eventualmente ela diz ?Criatura repelente. Eu era uma menina em flor, e olhe o que você fez comigo. Eu devia chamar a polícia e dizer a eles que você me violou. Ah, você é um velho muito, muito indecente.? esse momento, para mim, é um dos principais que denominam a situação de desprezo da menina, encaminhando sua relação com Humbert para uma estruturação com base em ameaças, sendo obrigada a ficar em silêncio por meio de terrorismos psicológicos propositalmente feitos por ele. O clímax que retrata essa relação de violência entre os dois foi quando ele começa a desconfiar de uma possível traição e narra "Empurrei sua maciez de volta para dentro do quarto e atirei-me sobre ela. Rasguei sua blusa. Abri os zíperes do resto. Arranquei suas sandálias. Enlouquecido, saí à caça de alguma sombra de infidelidade; mas o rastro que guiava meu faro era tão tênue que, na prática, não havia como distingui-lo do delírio de um louco".
Observando a história por um todo, é triste perceber o quão triste e miserável foi a vida de Lolita que logo cedo se viu órfã de seus pais e sendo sexualmente explorada por um longo período de tempo, encontrando a possibilidade de fuga em Quilty, dramaturgo que conduzia as peças teatrais de seu colégio, na cidade onde se instalou por um tempo com Humbert, que posteriormente foi revelado como também um tarado ao pedir que ela participasse de uma filmagem pornográfica. Lolita fugiu de Quilty, se mantendo com trabalhos de restaurante em restaurante, conhecendo em determinado momento Dick, com quem se casara e aos 17 anos engravidara, só então reaparecendo na vida de Humbert, no desespero de conseguir algum dinheiro. Humbert sai em sua busca, percebendo então a precariedade de sua existência, vivendo em um barraco, como denomina H.H. e dividindo uma humilde vida com seu marido e um cachorro. Por fim, Lolita morre no parto, perdendo sua vida e a criança no Natal de 1952.
Considerações pessoais: Lolita foi, para mim, um livro marcante, envolvendo inúmeras camadas e desafiando minha habilidade de percepção, tendo que traduzir a vítima pela mente obcessa e doente do narrador. Um livro que considerei genuinamente desafiador, o mais complexo que encarei nesse ano de 2024. Por anos eu me vi no desejo de consumir essa polêmica leitura mas tinha o medo de não dar conta da proporção que ela tinha, por fim eu não apenas dei conta como digeri de forma quase que desesperada cada palavra, cada folha. A narrativa de Vladimir me impressiona, uma escrita fenomenal, complexa, intrigante e cativante. A desenvoltura da história gera tanta conexão pela sua forma detalhada de narrativa que me choca ser ficcional, a profundidade gerada é tão precisa que parece serem personagens quase palpáveis de tão reais que se tornaram para mim. Certamente uma leitura que pretendo repetir, sempre na expectativa de ter algo a mais para absorver.
"o corpo de um demônio imortal disfarçado de criança do sexo feminino".
"uma expressão tão perfeita de desamparo que parecia converter-se numa máscara da inanidade quase confortável, só porque era o limite extremo da injustiça e da frustração"