Julia 08/06/2020"Hoje em dia, acho que foi um grande erro voltar para a costa leste e fazê-la frequentar aquele colégio particular em Beardsley, em vez de atravessar a fronteira mexicana enquanto isso era possível e lá gozar, na clandestinidade, uns dois anos de felicidade subtropical até que pudesse casar-me em segurança com minha pequena Creole; pois devo confessar que, dependendo das condições de minhas glândulas e gânglios, no curso de um dia eu passava de um polo de insanidade ao outro --- do pensamento de que por volta de 1950 teria de livrar-me sabe-se lá como de uma adolescente difícil, cuja mágica ninfescência se teria evaporado, ao pensamento de que, com sorte e paciência, eu poderia fazer com que ela eventualmente gerasse uma ninfeta que teria meu sangue correndo em suas delicadas veias, a Lolita II, que teria uns oito ou nove anos em 1960, quando eu estaria ainda dans la force de l'âge; na verdade, a faculdade telescópica da minha mente, ou de minha demência, era tão forte que me permitia divisar, no horizonte do tempo, um vieillard encore vert --- ou seria a verde putrefação? ---, o excêntrico, carinhoso e salivante dr. Humbert, praticando com a soberbamente adorável Lolita III a arte de ser avô." --- Lolita, Vladimir Nobokov, p.176-177.
Esse trecho mostra da maneira mais crua como funciona a mente do nosso narrador/personagem. Mostra as maquinações feitas para que seja possível alcançar os seus objetivos torpes. O narrador não é confiável, não se pode afirmar que os fatos narrados por ele são fiéis aos acontecimentos. A narrativa nos torna cúmplices.
Esse não é um livro, eu meu ver, para ser gostado. É bem escrito e a história prende o leitor não pela necessidade de saber o que vem depois, pois isso é declarado logo nas primeiras páginas, mas sim pela curiosidade em que até que ponto vai a determinação do narrador. Vale mais a reflexão que o entretenimento.