jota 23/05/2020Minha avaliação: 4,3/5,0 – MUITO BOMInúmeras mortes, estupros, violência contra mulheres, crianças e animais, zoofilia, traumas, tortura, bruxaria, intolerância e muito mais: o elenco de maldades e depravações do repertório humano em O Pássaro Pintado é infinito. E como tudo isso ocorre? Resumidamente, o livro do polonês naturalizado americano Jerzy Kosinski (1933-1991) trata das desventuras de um garoto durante a Segunda Guerra Mundial. Ele é o narrador sem nome de sua própria epopeia (quer dizer, um amontoado de desgraças), que começa no outono de 1939, num país não determinado da Europa Central.
Um casal de judeus, querendo proteger o filho de 6 anos dos perigos que se aproximam com a guerra e a perseguição aos membros de sua etnia, entregam-no aos cuidados de uma velha senhora de uma aldeia remota, acreditando que ali ele estaria bastante seguro. Porém ela morre de repente, um acidente ocorre, a casa se incendeia e o menino sai pelo mundo em busca de comida, abrigo e dos próprios pais. Mas o contato com eles está perdido irremediavelmente. O menino fica entregue à própria sorte e vaga pela Europa durante vários anos. Acaba se tornando testemunha e participante dos horrores e infelicidades que toda guerra traz.
Por ser moreno,ter olhos negros, as pessoas desconfiam que ele seja cigano ou judeu, duas minorias que são perseguidas não apenas pelos alemães, também pelos habitantes de diversas aldeias por onde ele passa. Afloram inúmeras crendices e superstições dos aldeões: acreditam que ele encarna a maldade, traz doenças, azar, seja um vampiro etc. Então é perseguido, castigado, atiçam cães selvagens contra ele, tentam afogá-lo ou matá-lo de diversas formas. Encontra em suas andanças e fugas um mínimo de piedade e uma imensa crueldade. O trauma advindo disso tudo faz com que perca a voz, passe a comunicar-se apenas por sinais, tem sonhos e delírios incompatíveis com sua idade.
De tanto ver triunfar a maldade aprende a ser mau também e desse modo consegue sobreviver: vai passando por episódios inacreditáveis e conhecendo personagens incríveis criados por Kosinski. As coisas melhoram um pouco perto do final da história, quando soldados russos entram em cena para expulsar os nazistas. O menino é enviado para um orfanato, onde não tem a vida muito facilitada, mas ali ao menos tem abrigo e comida. Se convive com internos violentos, a violência nem de longe é tão grande quanto a que enfrentou até o momento. Mas um dia um administrador do orfanato lhe comunica que há um casal a sua procura; pode ser que sejam seus pais. Então o menino, que já se acostumou a ser sozinho, teme perder sua liberdade, parece ter se esquecido deles: fugirá mais uma vez ou ficará para encontrá-los?
O Pássaro Pintado é também o nome do filme homônimo baseado no livro, uma superprodução de 2019, envolvendo a República Tcheca, Eslovênia, Ucrânia etc., e segue quase que fielmente os episódios narrados no livro. Uns poucos personagens foram condensados em outros, algumas cenas foram alteradas ou eliminadas, mas o resultado aos nossos olhos é mais terrível do que o da leitura, porque aquilo tudo que é narrado se torna visível agora na tela e é preciso ter estômago forte para acompanhar algumas cenas terríveis de olhos bem abertos.
O próprio título do livro (o que seria um pássaro pintado?) é formidavelmente ilustrado no cinema. Um pássaro de verdade pintado por um ser humano não é aceito pelos demais pássaros de um bando no céu; um menino judeu ou cigano, pouco parecido com outros meninos de sua idade, conseguiria sobreviver fora de sua comunidade? Vale a pena ler o livro e ver o filme. Apreciei ambos, especialmente o trabalho do pequeno ator que faz o menino no cinema (o nome do personagem é revelado no final).
Lido entre 15 e 22/05/2020.