Alê | @alexandrejjr 24/05/2022
Sobre esperanças
A ficção é um campo vasto que compreende inúmeras possibilidades. Quando se pretende escrever algo, é preciso ter em mente que tipo de história se quer contar, algo básico que todos os ficcionistas - até os pretensos - sabem. Mas além disso, interessa também saber como contar. Se uma dessas premissas não está bem resolvida, possivelmente o resultado não será satisfatório. Creio que “O que ela sussurra", da sempre interessante Noemi Jaffe, é um exemplo clássico da falta de equilíbrio entre esses dois alicerces de um excelente livro.
Lançado em 2020, “O que ela sussurra", segundo romance - classifico eu assim, pois ela é notadamente conhecida por produzir livros de difícil enquadramento em gêneros convencionais - da paulistana Noemi Jaffe, é uma ficção com pé profundo na realidade. A partir da história verídica da relação de Nadejda Mandelstam com o poeta russo Óssip Mandelstam, Noemi toma para si, através da fabulação, a sempre desafiadora tarefa de emular uma voz. Mas não qualquer voz: a voz daquela que guardou através de sussurros durante 25 anos uma produção artística calada pelo terror do autoritarismo stalinista. E, percebam, a ideia do livro é louvável: dar voz a quem guardava a voz de outro. A execução, no entanto, tem algumas falhas - no meu singelo ponto de vista, claro.
Para escrever “O que ela sussurra", Noemi baseou-se, entre muitas outras coisas, nos dois livros de memórias escritos por Nadejda: “Esperança contra a esperança” e “Esperança abandonada”. Além disso, pululam aqui e ali versos do poeta russo ao longo deste curto romance, como se fossem costuras entre uma e outra rememoração feita pela nossa narradora. Noemi, em vídeos promocionais da editora, declara que, ao ler esses dois livros de Nadejda, vislumbrou a possibilidade de refletir sobre o apagamento de uma voz e realizar, a partir dessa lacuna, literatura, ou seja, ficção. Portanto, ao narrar em primeira pessoa com uma prosa deliciosamente bem escrita, Noemi ficcionaliza os pensamentos de Nadejda a respeito de sua posição diante da trajetória do marido, numa interessante mistura entre o real e o ficcional, intercalando, através de uma linguagem robusta, o poético e o prosaico.
O que me fez não gostar tanto do livro, então? Simples: o ritmo. Em meio a trechos poeticamente potentes, entre digressões agradáveis e passagens cômicas, Noemi se estende mais do que o necessário para refletir sobre a voz perdida de Nadejda. É claro que os leitores sabem tanto quanto eu que a leitura deste gênero é uma espécie de visualização de uma montanha, em que se tem picos e bases, pois a leitura de um romance nunca é linear. Mas sinto que aqui ela se arrasta em determinados momentos - ou capítulos, se assim preferirem. Outra decisão tomada por Noemi que também me parece deslocada ou no mínimo confusa é a de tornar a poeta Anna Akhmátova, personagem recorrente dentro do romance, na voz que fecha o livro. Não parece contraditório que, ao dar espaço num romance à voz roubada de Nadejda Mandelstam ela tenha, de repente e sem aviso prévio, a voz “surrupiada” por outra personagem no capítulo derradeiro? Confesso que isso me desagradou um pouco.
Há aqui a busca por uma técnica muito utilizada na literatura contemporânea, vide romances como “Em liberdade”, de Silviano Santiago, no campo nacional, ou “A festa do Bode”, de Vargas Llosa, no campo estrangeiro. Uma técnica que, registre-se, é facilmente identificável e dificilmente executável. A tentativa de se apropriar de uma identidade e ficcionalizá-la é sempre estimulante para os leitores, visto que é uma das inúmeras possibilidades de criação em cima da realidade. Afinal, quem de nós já não imaginou como fulano ou sicrano pensava?
Em um livro que aborda a poesia, a submissão, o terror, o comprometimento e a libertação da arte, além da busca por uma identidade perdida, Noemi expõe, através do imaginado, uma mulher que sobreviveu às circunstâncias de seu tempo. Talvez resida aí o ponto mais forte deste curto romance, que é bem resumido através do nome de sua narradora, Nadejda, que em russo significa “esperança”. Esperança essa que nunca devemos deixar de perseguir, sejamos nós escritores ou leitores.