Marc 04/09/2013
Minha intenção não é fornecer nunca uma interpretação exaustiva e fechada de qualquer livro. Até porque seria um disparate imaginar que uma resenha de uma ou duas páginas possa dar conta de um autor como Bolaño, ou de qualquer outro. É preciso investigar com calma suas referências e estilo de escrita para só então concluir algo de modo mais embasado. Me limito a mencionar de leve alguns pontos, assim como fiz com “O leilão do lote 49”, que havia sido duramente criticado em uma resenha que não havia sequer mencionado o motivo de tanta admiração dos críticos pelo livro (e a partir daí poderia tranquilamente dizer: “dado tudo isso, mesmo assim, não gostei do livro e essa é minha opinião pessoal”). Sem citar nomes ou entrar em polêmicas inúteis, minha resenha aqui vai tentar rebater uma outra sobre um livro de Bolaño que nada mais fez do que generalizar seus próprios pensamentos sobre o autor até estabelecer como verdades interpretações que são gerais demais e que simplesmente não conseguem deitar uma palavra sobre o livro em questão.
Assim, para começar, a questão da literatura como meio privilegiado de expressão íntima.
Me pergunto se vale a pena insistir nesse psicologismo. Porque se o que os autores fazem, de acordo com essa visão, é apenas mostrar algo de si, dar dicas sobre o que são e sobre os traumas que carregam da infância, não seria melhor só entrevistá-los e perguntar diretamente como era a vida em família, se passou fome e assistiu a todo tipo de violência, sendo que essa experiência moldou para sempre seu caráter?
Um romance tão complexo, com cerca de 50 personagens contando suas histórias, que muitas vezes chegam a desmentir o que outros haviam dito, pode mesmo ser apenas a expressão do autor? Tudo que ele quis foi apenas se disfarçar de Arturo Belano, o personagem que não tem voz? Se assim fosse, as inúmeras páginas de personagens se referindo a Belano trairiam uma vaidade sem limites de Bolaño... O sonho de ser o centro do mundo, um paranóico que ao ver suas suspeitas frustradas, se serviria de sua própria literatura para satisfazer sua doença. Antes de sair levantando essas hipóteses creio que vale a pena fazer o exercício lógico de imaginar até onde elas podem nos levar...
Outro ponto: a literatura dentro dos livros
Esse movimento de dobra, ou seja a literatura dentro do livro, que parece para alguns como uma autocrítica do autor — se formos seguir o próprio método psicanalítico, lembra o que Freud chamou de elaboração secundária nos sonhos. Basicamente trata-se dos sonhos em que uma voz racional parece se erguer e decretar que aquilo não passa de um sonho e podemos voltar a dormir tranquilamente. O mecanismo aqui, segundo o psicanalista, é uma tentativa da instância censora de suprimir o sentimento de angústia ou aflição suscitado por um sonho que escapou dela num primeiro momento. É o momento em que no sonho dizemos para nós mesmos: “isto é apenas um sonho”. Agora, se esse detalhe de que os personagens de Bolaño são sempre poetas, críticos e escritores merece ser mencionado, mais uma vez, devemos levar o raciocínio ao limite para ver onde pode dar. Quer dizer, ao perceber que está se revelando demais, justamente através de um personagem que não tem sequer uma fala durante todo o livro (!), o autor recorre ao mesmo mecanismo dos sonhos para dizer que isso é apenas literatura. Mas a pergunta anterior segue aqui tão válida quanto antes, talvez até mais forte: por que alguém se daria ao trabalho de se revelar e ocultar ao mesmo tempo? O simples prazer de sentir-se o centro do mundo, como um paranóico que precise ser decifrado me parece muito pouco provável...
Antes disso, e se ao escrever o livro mesmo fosse um mecanismo de intervenção social? E se ao invés de tentar se expressar codificadamente através do livro, o autor não quisesse ser decifrado mas provocar efeitos? Afinal, quem vai pegar um livro como esse, com uma estrutura complexa, multifacetada, e tentar encaixar todos os depoimentos para estabelecer a verdade do texto? Fico imaginando a dificuldade concreta de escrever um livro assim. Porque muitas vezes as histórias contadas abordam os dois personagens apenas durante um pequeno período. Como se fossem elipses e a proximidade acontece em um pequeno pedaço de sua trajetória. Não é apenas uma história complexa que está sendo contada, mas inúmeras e fica muito difícil definir com exatidão o diagrama geral do livro, porque isso também depende da nossa própria interpretação de momentos chave.
Sei que para a interpretação psinalítica da literatura, toda essa complexidade remete mesmo a alguns casos de paranóia que surpreendem justamente pela elaboração. E é difícil argumentar com uma ciência que estabelece o discurso como um sintoma em alguns casos, porque mina qualquer possibilidade de reconhecer a validade de seu conteúdo, remetendo sempre ao esquema do sintoma. Me pergunto, no entanto, se podemos continuar aceitando que gerações inteiras de artistas sejam reduzidas à mera expressividade de suas psicopatologias. Essa interpretação destrói qualquer objetivo mais amplo da arte, a domestica até ao ponto de nos tranquilizar e torná-la mais uma versão do que já estamos acostumados. Essa, basicamente, é uma das razões mais significativas para que não aceite esse tipo de leitura...
Esse livro produz, portanto, incerteza. E não é o trecho final, retirado do diário de García Madero que vai explicar tudo que a segunda parte do livro acaba de mostrar. Sei que essa sensação fica muito forte, mas ela abre para outra incerteza que é justamente o destino de seu autor.
Esse efeito, a produção de incerteza, me parece um grande tema da literatura contemporânea. Bolaño escolheu esse método, o da multiplicidade de versões, mesmo que todas elas sejam realistas e pareçam não dar margem a dúvidas. Mas é o acúmulo delas que ao invés de contar uma historia vai denunciando o quanto fica de fora na fala de cada um. Não se produz um efeito cumulativo, mas a dúvida. Thomas Pynchon, ao contrário, aposta no incrível (no sentido daquilo que não é acreditável). Isso para mencionar apenas dois autores.
Mais especificamente nesse livro de Bolaño, embora eu tenha sentido isso em alguma medida também na leitura de “Estrela Distante”, o tempo mostra o quanto corrói e modifica os personagens. Assim, me parece, não a violência, mas a vida (e a morte, evidentemente) como passagem do tempo que arrasta a tudo. Perceba como os depoimentos vão mudando de tom à medida que os personagens envelhecem. Como conflitos são atenuados e amores perdem a chama. A transformação da vida adulta que chega para todos, até para Ulisses Lima e Arturo Belano, embora esses, ao que parece, tenham preferido viver de modo diferente de todos os outros, se tornando nômades. O costume nos faz pensar que a explicação para esse nomadismo é uma incapacidade de adaptação às convenções sociais vigentes, que os dois, mesmo separados, vão vivendo e mantendo em si o desejo de não ser mais um na multidão. Mas não há nada que comprove esse tipo de afirmação idealizada no livro.
E a vida, a passagem do tempo, para ser mais exato, vai modificando a todos. Esse imenso universo criado pelo autor incorpora também essa dimensão, o que me faz pensar, com alegria, que Bolaño detestava a idéia de traçar retratos estáticos. Não há descrições, como nos acostumamos a ler nos romances novecentistas, mas sim um acompanhamento falho do movimento. Me pergunto se não é assim que vemos a vida passando por nós e pelas pessoas com que nos relacionamos, porque quando as encontramos depois de se ausentarem de nossas vidas, estão mudadas, com novas cicatrizes, novas alegrias e amores. E sentimos, mesmo que não possamos racionalizar isso num primeiro momento, que já não as conhecemos totalmente, que muita coisa nos fugiu e mesmo que elas contem o que se passou, é toda uma existência que não nos toca.