edu basílio 22/05/2020D E Z !
O tema "ação biológica das substâncias químicas" é uma das minhas maiores paixões em ciência. Tal tema não poderia ser mais atual nesse primeiro semestre de 2020, enquanto a humanidade é terrivelmente torturada e ceifada pela pandemia de covid-19, e tudo o que todos queríamos é que houvesse uma droga-milagre que curasse os doentes. Para os anais (sem trocadilho) da História, entrarão os terraplanistas e outros psicóticos do mesmo balaio, que criaram o delírio adicional segundo o qual a cloroquina É A PANACEIA pronta contra o SARS-Cov-2, ignorando os sólidos dados das ciências médicas: não apenas não foram evidenciados efeitos benéficos dessa substância contra esse vírus, como também ela causa graves efeitos tóxicos cardiovasculares. Em poucas palavras, com os dados científicos disponíveis no dia em que redijo estas linhas, não é possível afirmar que a cloroquina será a grande droga-star desse momento da nossa História...
Mas neste agradabilíssimo livro, o que Thomas Hager fez foi selecionar algumas drogas e narrar como, do ponto de vista histórico, estas SIM redesenharam -- para o bem ou para o mal -- o destino de inúmeras pessoas e a cultura de países inteiros, além de se constituírem como munição para a medicina lidar melhor na luta contra diversificadas doenças (**).
Em minha visão, duas importantes classes de drogas também teriam permitido tecer empolgantes discussões histórico-culturais, e lamentei um pouco não encontrá-las entre as incluídas na obra: os antivirais e os antidepressivos.
- Os antivirais tiveram seus primeiros representantes bem sucedidos nascidos nos anos 1960, em pesquisas de tratamentos contra herpes. Seus desenvolvimentos subsequentes, para se ater só a dois exemplos, permitiram o tratamento de várias formas de hepatite e trouxeram aos portadores de HIV a possibilidade concreta de uma vida plena e digna.
- Os antidepressivos -- dos quais os exemplares mais modernos incluem a mirtazapina e a vortioxetina, com seus mecanismos de ação bastante seletivos em termos de proteínas receptoras alvo no SNC -- trouxeram não só alívio e vidas produtivas para pessoas assombradas pela depressão (em particular a forma mais claramente fisiológica, dita "depressão melancólica"), como também propiciaram avanços na compreensão científica de outros distúrbios psiquiátricos cuja diferenciação diagnóstica exige sutilezas. E apesar desses feitos, seu uso ainda é tema para controvérsias e até origem de estigmas, em pleno 2020.
... se por um lado lamentei um pouco não encontrar no livro nada sobre essas duas classes de drogas, pelo outro é preciso estar consciente de que ele não se propôs a ser um compêndio de farmacologia. Alguém poderia, senão, clamar que faltou também falar de imunossupressores, tranquilizantes benzodiazepínicos, antimaláricos (como cloriquina e hidroxicloroquina), anti-hipertensivos... e a lista não pararia mais.
Ficou a experiência de uma leitura prazerosa, repleta de esclarecimentos histórico-culturais sobre drogas e tratamentos médicos -- tudo isso com um predicado que julgo imprescindível em qualquer livro de divulgação científica para o grande público: o dueto rigor conceitual + linguagem acessível a todos. Essas duas qualidades reluziram juntas nessa obra.
Assim, para quem gosta de -- ou se interessa por -- aprender um pouco de história da química fisiológica, deixo minha recomendação sem hesitar.
:-)
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Alguns destaques:
- A partir das histórias nada banais dos médicos Henri Laborit e Jean Delay, que culminaram com a descoberta quase acidental da clorpromazina (primeiro antipsicótico) na década de 1950, nos é narrado como essa substância revolucionou o tratamento da esquizofrenia, abriu o campo para a compreensão de sua neuroquímica e, assim, para o desenvolvimento de novos antipsicóticos, o que acabaria com o conceito de hospitais psiquiátricos como o que de fato eram: depósitos de loucos sem esperança fadados a sofrer até morrer.
- Eu achava que as vacinas e seu princípio biológico nasceram historicamente com Pasteur... mas não: é verdade que ele deu corpo científico a isso, mas foi fantástico descobrir que uma inglesa, Lady Mary Montagu, teve o primeiro insight quase dois séculos antes sobre a imunização contra a varíola a partir de secreções das feridas de atingidos por essa doença.
- De maneira similar, quando se falava em história dos antibióticos, eu pensava de imediato em Alexander Fleming e seu Prêmio Nobel pelas contribuições na descoberta da primeira penicilina. Ignorava que um certo Gerhard Domagk, algumas décadas antes, dera contribuições médicas muito relevantes nessa área, com a descoberta e a demonstração do potencial antibacteriano das sulfas, enquanto pesquisava a química de corantes.
- A história do ópio rendeu alguns capítulos, que abordaram desde a descoberta na antiguidade das propriedades analgésicas e euforizantes da papoula, passando pelos bastidores abjetos das duas "Guerras do Ópio" na China, até chegar nos papéis de seus derivados e análogos (morfina, heroína, codeína, metadona...) a partir do século XX, com seus aspectos ainda muito problemáticos socialmente, mas revolucionários para a medicina no controle da dor severa.
- Há ainda capítulos dedicados ao delicado equilíbrio vantagens-limitações do uso de estatinas, ao empoderamento feminino e as consequentes mudanças sociais trazidos pelos anticoncepcionais, e a mais reconstruções históricas (com a valorização das personalidades envolvidas) de como outras substâncias provocaram guinadas nos rumos da Humanidade, inclusive os moderníssimos anticorpos monoclonais e sua ampla gama de potenciais terapêuticos.
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