Amanda 24/07/2020Narrativa sensível e inclusivaUm mundo de açúcar, doces, bolos, plantações de milho doce e um mar de refrigerante de morango: esta é a Confeitaria, o lar de Sumi. Ou pelo menos era, já que ela está morta. Recapitulando, Sumi foi assassinada por Jill em De Volta para Casa, primeiro livro da série Crianças Desajustadas (eu avisei que teríamos spoilers!). Tempos depois do desfecho do volume inicial, encontramos o Lar de Eleanor muito parecido com aquele que deixamos para trás. Cora é a nova protagonista, então tudo acontece na perspectiva dela: são as impressões dela sobre a escola, sobre os outros estudantes, sobre Rini e todas as situações que vão ocorrendo durante a trama.
Talvez Cora não tenha sido tão interessante de se seguir quanto Nancy ou Jack foram nos livros anteriores, mas esse novo olhar sobre a situação dos mundos e seus viajantes também é um ponto interessante explorado pela autora. Já falei um pouquinho sobre Cora, mas confesso que gostaria de ter descoberto um pouco mais sobre a menina. Seu lar é um mundo submerso, onde Cora era - ainda é - uma sereia, livre dos obstáculos de seu corpo físico que um mundo normal impõe. Mas, apesar de Cora comandar o ritmo narrativo, a história é de Rini e Sumi.
Com a morte de Sumi no Lar de Eleanor, Rini foi afetada no mundo da Confeitaria; se a mãe morreu antes de concebê-la, Rini não pode mais existir. Nesse ponto, a narrativa parece um pouco confusa pois passado, presente e futuro se misturam num emaranhado de fatos, e é preciso lembrar que a Confeitaria é um mundo nonsense e não segue as regras de lógica aplicáveis aos outros mundos. As coisas não fazem sentido mesmo, e forçar um raciocínio muito concreto seria ir contra a própria natureza de Rini e seu mundo.
Toda a argumentação da autora para trazer Sumi de volta à história é a profecia de que apenas Sumi conseguiria salvar a Confeitaria de uma rainha tirana, profecia essa que não pôde se cumprir por causa da sua morte precoce (ainda recapitulando, a explicação de Sumi sobre ser expulsa da Confeitaria e seu papel político no mundo é dada em De Volta Para Casa). Então se inicia a saga para ajudar Rini e a Confeitaria.
Preciso dizer que mesmo para uma novela, com poucas páginas, achei o início bastante arrastado. Cora e Rini não conseguiram me cativar muito, mas a presença de Kade e Christopher, dois dos meus favoritos, me incentivou a prosseguir na leitura. A ambientação é excelente e a Confeitaria é tão maluca quanto se poderia esperar. Senti uma inspiração no famoso conto João e Maria, onde tudo é comestível e delicioso, e possivelmente em Alice no País das Maravilhas, com toda a bizarrice inexplicável, governado por uma déspota ensandecida. Particularmente, eu dispensaria algumas descrições a mais, mas a verdade é que, considerando o conjunto, a escrita da Seanan funciona muito bem.
Seanan McGuire toca em temas sensíveis em Sob o Céu Açucarado e aprofunda personagens que, a esta altura, já são velhos conhecidos. Kade e Christopher ganharam várias novas camadas e personalidades complexas e trazem reflexões muito pertinentes à trama. A questão dos diferentes mundos também é mais explorada e elaborada, sendo possível compreender com muito mais clareza o funcionamento das portas, das necessidades dos mundos e dos viajantes que vêm e vão entre um mundo e outro. O que se inicia como uma jornada por um universo açucarado revela enorme maturidade e seriedade ao tocar em temáticas fundamentais para a compreensão da série como um todo.
Entre os três livros já publicados aqui no Brasil pela editora Morro Branco (aliás, em um trabalho lindíssimo), Sob o Céu Açucarado é o mais sensível e intimista de todos, sendo necessário entender que, às vezes, é preciso abrir mão da ação e aventura para que se possa refletir e compreender melhor o que está acontecendo.
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