Ao pó

Ao pó Morgana Kretzmann




Resenhas - Ao pó


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Irka Barrios 02/01/2022

Resenha publicada na revista Ser Mulher e Arte (novembro/2020)
A aposta de Ao pó, livro de estreia da autora Morgana Kretzman, mira num assunto presente e doloroso para grande fatia do público feminino: o abuso sexual. Preciso reconhecer, não é um tema novo na literatura. É, ao contrário, um tema bem recorrente. Mesmo assim, o assunto sempre desperta interesse e instiga o debate. Talvez porque seguimos, em pleno século 21, assistindo, perplexas, a impunidade para essa violência vil e covarde.
Na obra, Sofia, uma atriz que vive no Rio de Janeiro, coleciona alguns relacionamentos fracassados que (logo fica evidente) têm a ver com traumas que a personagem tentou enterrar. Por conta dessas experiências traumáticas vividas na infância, Sofia tem dificuldade de se abrir, de se envolver, de confiar num companheiro. Como se não fosse carga suficiente, o sofrimento de Sofia vem carregado de uma boa dose de culpa. Quando optou por enterrar o passado, ela praticamente entregou Aline, a irmã mais nova, às vontades de Luiz, o tio materno abusador.
Adulta, conforme tenta se adaptar a uma vida monogâmica mais conservadora, Sofia custa a perceber o quanto os fantasmas ainda a perturbam. Envolve-se com Carlos, um famoso diretor de teatro, permitindo-se viver à sombra da figura dele. Há boa dose de carência nesta relação, bem como um olhar idealizado sobre o companheiro, como se Sofia desejasse ser salva através de um relacionamento que prometia equilíbrio. É um olhar que tenta esconder a solidão e a falta de amor próprio que afligem Sofia. A autora reproduz com muita sensibilidade esses sentimentos compartilhados entre mulheres que sofreram abuso. A falta de afeto e o reconhecimento do corpo como objeto para proporcionar prazer ao outro são sensações que influem na construção da imagem desfigurada que Sofia faz de si mesma.
Durante a leitura, diversas vezes lembrei de Naomi Wolf e seu Vagina, uma biografia. Na obra, Wolf narra os relatos sobre um trabalho voluntário com grupos de mulheres que sofreram violência. Ela afirma que há enorme diferença entre mulheres que sofreram agressões físicas e mulheres que sofreram estupros. Em geral, mulheres estupradas apresentam um tipo vazio de expressão, como se o olhar perdesse o brilho, como se, após a violência, perdessem o gosto pela vida. O argumento de Wolf direciona para a incansável luta de todas as mulheres. Sabe-se, desde muito tempo, que o estupro não diz respeito ao desejo sexual, mas a poder. Estupro é sobre o suposto direito que os homens acham que têm de desfrutar do corpo feminino. Diz respeito a tentar sobrepor sua vontade e a subjugar pela força. Isso, claro, também não é novidade. O que surpreende é a estratégia, ainda em funcionamento e com sucesso, mesmo após séculos de conscientização.
Mas o livro de Kretzman vai além no debate. Há outro tema, bem mais atual, que está muito ligado à violência e, em tempos de redes sociais, torna-a ainda mais cruel: a exposição. Mulheres também estão em desvantagem quando se toca no assunto exposição. O mesmo medo, de ser exposta ao denunciar um abuso, tomou enormes proporções quando este abuso pode ser compartilhado a milhares de usuários com apenas um clique. Os julgamentos são cruéis, sexistas, arcaicos. Remetem aos tempos em que nos era cobrado o compromisso de nos preservarmos. O cinismo vem de mãos dadas com o argumento de que temos, nós mulheres, uma reputação a manter. Reputação, aliás, que é vista com maior complacência quando se julga o comportamento masculino na internet. É o machismo com todos os seus tentáculos. Mesmo sendo uma mulher adulta, independente, frequentadora de um ambiente cultural (e por isso mais liberal, espera-se), Sofia não se recupera da exposição que sofre após uma noite de exageros.
Narrado em primeira pessoa, na voz de Sofia, Ao pó se desenvolve a partir de três linhas temporais que pontuam fatos decisivos na vida da protagonista. Kretzman estruturou o livro de forma a direcionar o leitor, como uma iluminadora de palco, para cada ponto crucial em cada fase da vida da protagonista. Dividiu-o em cinco partes: Prólogo, Recomeço, Suspensão, Reparação e Epílogo, uma estruturação com certo aceno ao teatro, cenário importante para a história e bastante presente na biografia da autora, que também é atriz e roteirista.
A violência da exposição de Sofia, impune porque é potencialmente anônima, empurra-a de volta para seu ciclo autodestrutivo. São muitos os fios de raciocínio que podemos puxar a partir desse segundo episódio traumático. Mas vamos nos ater à boa e velha culpa. Quando Sofia se vê responsável pelo que aconteceu desiste de denunciar e, devemos admitir, sua atitude é compreensível. Mulheres vivem esse constrangimento. A possibilidade de frequentar uma delegacia, submeter-se a exames constrangedores, ouvir julgamentos sobre seu corpo, sua atitude, são diversos os impedimentos que se apresentam quando a mulher reflete se vale a pena passar por toda a tortura psicológica de uma denúncia formal. Além do medo de enfrentar o machismo e a misoginia, Sofia precisa encarar suas próprias convicções. Sente-se incapaz de reconhecer a violência, pois acredita que foi responsável pelo que aconteceu. É o drama de muitas mulheres num país que, na última contagem, registrava um estupro a cada oito minutos.
Acontecimentos da vida real jogam na nossa cara o quanto uma mulher pode ser desrespeitada quando decide buscar punição para o crime que sofreu. Cerca de um ano atrás presenciamos o julgamento do homem que abusou da influenciadora digital Mari Ferrer, uma jovem contratada como promoter de uma casa de shows de Florianópolis. O advogado de Mari alega que ela foi drogada e estuprada nas dependências da casa noturna. Um crime abjeto, mas não para os juízes e advogados presentes na sessão que viralizou na internet. As cenas do julgamento demonstram a misoginia com que o caso foi conduzido. Para destruir a imagem da vítima, o advogado de defesa do réu vasculhou as redes sociais de Mari em busca de fotografias sensuais. Infelizmente, tanto para os homens responsáveis pelo caso quanto para a sociedade brasileira uma mulher que publica fotos sensuais automaticamente é considerada como alguém que facilita e até instiga a ação de estupradores.
É uma luta constante, desigual. Da composição El violador es tu do coletivo chileno Lastesis ao movimento das atrizes assediadas intitulado Me too, da feminista Lola (que tanto nos orgulha) aos inúmeros grupos que combatem violência sexual e feminicídio nos recantos mais remotos do Brasil, há um esforço para que o empoderamento alcance cada vez mais mulheres. Avançamos, é verdade. Mas ainda há muito pela frente. E mesmo que a função principal da literatura não seja servir como bandeira de luta, o debate que os temas abordados provocam é sempre muito bem-vindo. Nesse sentido Ao pó coloca a literatura no centro de uma discussão urgente.


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Lurdes 30/06/2022

Sofia tem 14 anos quando descobre que seu Tio, que cometia abusos contra ela, agora está abusando de sua irmã, Aline, que acaba de completar 11 anos. Sofia tenta proteger Aline e decide que, tão logo seja possível, irá embora de Tenente Portela cidade no interior do RS, e depois buscará a irmã.

Com 18 anos ela se muda para o Rio de Janeiro mas sua necessidade de apagar da memória tudo porque passou, acaba afastando as duas irmãs, únicas a saber o que acontecia.
No RJ, inicia carreira como atriz, com relacionamentos casuais, até conhecer Carlos, com quem acaba desenvolvendo uma relação tumultuada e tóxica.

A sombra e o peso de seu segredo vai minando as possibilidades de êxito de suas relações, familiares, amorosas, e mesmo de amizade.
A Sofia mulher não consegue se desvencilhar da Sofia menina, dos seus traumas e de seus fantasmas e apela para a bebida, como meio de fuga.
Seus planos de esquecer tudo, mantendo distância, não surte o efeito desejado e ao ser vítima de nova violência sexual, desta vez exposta publicamente, suas frágeis defesas desabam.
A estória é dividida em capítulos com narrativas da protagonista, contando a estória em si, alternados com outros que mostram toda a sua angústia interior, com fluxos de consciência, sonhos e informações externas.
Uma leitura com um tema tão espinhoso sempre é dificil mas a autora consegue nos conduzir de forma segura, com uma abordagem muito delicada, sem apelar para descrições, se concentrando nos sentimentos da personagem.

Uma situação como a que Sofia e Aline vivenciaram é muito dificil de superar. O número de casos de abuso infantil é assustador, na maioria das vezes, cometido por pessoas muito próximas de suas familias ou mesmo por familiares.
É necessário que se tenha uma rede de apoio emocional e psicológico às vítimas e que se busque a punição dos abusadores, denunciando, SEMPRE.
O silêncio tem um peso grande demais e ninguém merece carregá-lo sozinha.

PARA DENUNCIAR
DECA - Divisão Especial da Criança e do Adolescente,
Disque 100,
Conselho Tutelar,
Delegacia da Mulher.
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MãeLiteratura 12/07/2023

Muito bom!
Hoje é dia de #12Livrospara2023! Este é o livro de julho.⁣

Uma trama muito bem construída. Um tema pesado, que é "equilibrado" por um texto fluido e bem desenvolvido.

Sofia é a nossa protagonista. Deixou a cidadezinha do Sul e foi para a cidade grande, virar atriz. Nas reminiscências que tenta evitar está Aline, sua irmã caçula, que ainda mora com a mãe.

Um livro sobre tudo que não é dito, tudo que é evitado. Temos mecanismos de defesas extremamente atuantes, que me trazem uma reflexão potente.

Seria diferente se houvesse um ambiente saudável, onde o diálogo franco e poderoso pudesse agir, apaziguando corações, trazendo a certeza do amor, do cuidado, da proteção?

Seria diferente se estas mulheres tivessem acesso aos serviços de saúde mental, aos processos terapêuticos?

Provavelmente não existira tanta fuga, tanto silêncio, tanta dor à ser evitada.
Uma trama que eu termino pensando, que pena, poderia ser tão diferente...

A escrita da Morgana é muito potente e bonita. Senti muitas emoções conflitantes durante a leitura. Não é uma leitura leve, mas é muito necessária.

Gostei da capa e amei a diagramação da Patuá, linda e super caprichada.⁣


site: https://www.maeliteratura.com/2023/07/12livrospara2023-julho-ao-po.html
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Euler 24/01/2022

Ao Pó vai fundo nas violências que são cometidas contra as mulheres desde a infância, violências que perpassam seus corpos, suas existências, se entranhando em seus sonhos, em suas subjetividades. No livro da Morgana, acompanhamos Sofia que após ser abusada por seu tio na infância, vê que o mesmo acontece à sua irmã mais nova. E mesmo tentando fugir assim que se torna independente, o trauma a acompanha, influenciando nos seus relacionamentos, no sentimento de culpa, no que projeta para si.
Há na escrita do romance algo de magnético, o texto corre de forma simples - o que é o alto da montanha - e vai nos absorvendo entre as páginas que corre.
Adoro como a autora trabalha o tempo ao favor da estrutura do romance, o que o torna muito dinâmico. E também como sempre nos deixa em suspensão nas partes mais curiosas. Morgana consegue brincar com nossa curiosidade e não entrega o drama gratuitamente.
Ao pó nos faz pensar no mal que a masculinidade tem feito à nossa sociedade, e como os homens são ameaça, sejam eles parentes da família, companheiros amorosos, ou conhecidos.
Particularmente, é uma delícia acompanhar os bastidores da vida da protagonista no teatro e nas suas andanças RJ-SP. Ter como pano de fundo o teatro acaba sendo sintomático pra se pensar os mascaramentos que há na sociedade, que além de violentar as mulheres não permitem sua defesa. E é a reparação disso - achei bem sensível chamar essa parte assim - o que protagonista busca. E o que devemos buscar todes juntes ??
Rafael Kerr 24/01/2022minha estante
Oi. Tudo bem? Talvez você já tenha me visto por aqui. Desculpe o incomodo. Me chamo Rafael Kerr e sou escritor. Se puder me ajudar a divulgar meu primeiro Livro. Ficção Medieval A Lenda de Sáuria - O oráculo. Ja está aqui Skoob. No Instagram @lenda.de.sauria. se gostar do tema e puder me ajudar obrigado.




Zeka.Sixx 17/02/2022

Cicatrizes que teimam em ser reabertas
Surpreendente vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, este romance de estreia da gaúcha Morgana Kretzmann narra a história de Sofia, jovem nascida em uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul que sofreu abusos sexuais por parte de um tio em sua infância. Já na adolescência, quando percebe que o mesmo tio também está abusando de sua irmã mais nova, Sofia decide fugir de sua cidade natal na primeira chance que consegue.

Alternando idas e vindas no tempo, acompanhamos a trajetória de Sofia em sua juventude, em especial entre os anos de 2006 e 2014. Morando no Rio de Janeiro, consegue se reinventar como atriz de teatro. Aos poucos, porém vamos percebendo o quanto é difícil apagar as chagas do abuso sofrido no passado, à medida em que a protagonista embarca em relacionamentos tóxicos, adota comportamentos autodestrutivos, involuntariamente sendo presa fácil para novos abusos físicos e psicológicos. Aos trancos e barrancos, mesmo nas cordas, Sofia luta para se manter em pé, agarrada à esperança de acertar as contas com o passado.

Um romance curto, mas muito envolvente, com uma temática difícil e pesada. Ainda assim, o leitor fica totalmente preso à história, quase sentindo na própria pele os horrores enfrentados pela personagem principal, tamanha a verossimilhança das situações narradas. A autora adota o interessante recurso de não narrar detalhadamente algumas das cenas mais pesadas, oferecendo ao leitor apenas elementos suficientes para entender o contexto do que aconteceu, o que acaba conferindo ainda mais força à narrativa. Uma ótima leitura.
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