spoiler visualizarmateuseven 03/02/2011
Necrópolis - A Fronteira das Almas
Pra mim, a criança naturalmente é um ser curioso, disposta a se aventurar por aí sem medo de ser feliz, de mergulhar em outro universo só com a força da imaginação. E esse mergulho pode ser feito com um pedaço de um giz, desenhando-se uma portinha na parede, ou pode ser também concluído entrando em um guarda-roupa mágico, ou até caindo dentro da funda toca do coelho branco.
Mas Verne, protagonista dessa história, não é mais uma criança, aliás, ele está em uma potencial transição da fase da adolescência para o mundo adulto. Ele ainda insiste em gostar de histórias infantis apesar do seu ceticismo sempre falar mais alto do que elas. Ele é até acompanhado por um bichano, um AI (tipo de manifestação fantasiosa que acompanha as crianças até a puberdade, sendo um tipo de consciência companheira, como o grilo feliz :D), lembra também os daemons do Fronteiras do Universo para ser mais exato, o qual o autor diz ser uma de suas maiores inspirações.
Após o primeiro conflito da trama, o qual me pegou de surpresa pela proporção da tragédia, Verne decide-se levar por conselhos de um estranho, Elói, um cara maneiro que esconde profundos saberes sobre a vida e a morte, e que diz ter a chave para um dos confins dos outros mundos (o pior deles — Necrópolis); e que com essa passagem, Verne poderá ter uma chance de rever a alma de seu irmão, Victor, alvo da tragédia.
Como eu falei, Verne é cético e turrão, mesmo depois de ver centauros, fadas, e tudo o que é tipo de "coisa ruim" na porteira do caminho, ele não fica assim tão satisfeito e resolve arredar o pé da aventura. É daí que entra a parte mais verossímil do livro, a qual, colocada em qualquer outra ocasião tornaria-se desnecessária, mas que aqui se encaixa perfeitamente. A cena do Tarot é a parte mais lenta do livro, mas é ao mesmo tempo instigante porque ela funciona, tirando todo o misticismo que geralmente essa arte carrega, como um profundo reconhecimento da essência do personagem, uma leitura de seus desejos profundos, do seu passado e futuro, e também como uma preparação para a sua vindoura jornada. A personagem cigana que faz o contraponto com Verne nesse capitulo é afiadíssima, quase que lendo sua mente consegue rapidamente antever seus movimentos e de seu AI, retirando qualquer resquício de dúvida da alma cética do garoto através das cartas, fazendo-o abdicar de seus medos (ou de quase todos), tornando-o apto a mergulhar de vez no mundo de Necrópolis.
A aventura começa quando chegamos em Nárnia, ops, Necrópolis; a brincadeira foi totalmente intencional, porque esse mundo funciona mais ou menos como os outros de outras aventuras. É uma ampla região cercada de montanhas, lagos, florestas, geleiras, e principalmente desertos de areia azul, habitados por uma infinitude de seres mágicos, que vão desde Centauros, Doendes, Bárbaros, Gigantes, Sátiros, Fadas, Sereias, e até Zumbis. Incluindo nessa seleção criações inéditas do autor como os Corujeiros e os Virleonos. Às vezes o descontrole da criação causado pela pluralidade de espécies acaba prejudicando a leitura, por pouco se aprofundar nas próprias criaturas e nos seus reais objetivos — me perguntei, qual é a dos centauros afinal? Porém essa pluralidade vai bem a calhar de outro lado, já que diretamente e indiretamente, através de citações, aventuras, flash-backs, mais da metade de Necrópolis é explorada no livro, mostrando que esse mundo possuí uma complexa organização; apesar de que, pra onde eu queria que eles fossem de verdade (arvoredo Lycan), eles não foram. E coloque complexidade nisso, as descrições apesar de breve são bem realizadas, sabemos até sobre a distinta composição solar e lunar do local ao longo da leitura, suas diferenças geográficas, e suas maravilhas arquitetônicas, como a cidade Real nos campos de Soísile, feita de puro ônix e opala. Essa consegue se igualar facilmente em formosura com Minas Tirith, certamente.
Assim como em um rpg mais do que em qualquer outra fantasia que eu li, a aventura se transforma, até tendo desnecessários vais e voltas típicos dos rpg’s eletrônicos que já joguei, e os costumeiros encontros e trocas de favores. Porém o ritmo que a aventura toma é mais frenético que um game, logo os arcos começam a aparecer, os personagens são apresentados, e os conflitos começam a se desencadear. Nada de descrições longas e monólogos internos: as aventuras começam, finalizam, começam novamente, e assim por diante. Em pouco segundos você já está em outro capítulo! Há de se notar que muitos dos ganchos acontecem de repente nas últimas frases de um capítulo, reforçando o caráter de suspense e ação da trama, mais do que o de terror.
Porém, o que pode ajudar, também pode se tornar uma armadilha, algumas vezes as coisas acontecem tão rapidamente, que é notória a falta de profundidade na construção de uma trama ou de uma personagem, como a do Conde Dantalion ou da Mercenária, ambos personagens importantes, mas que são cercados por motivações superficiais a respeito da colaboração com o jovem Verne. Os próprios parceiros gélidos da mercenária Noah e Joshua parecem ter mais emoção que a própria capitã, que se não fosse pelo seu antagonismo com o personagem Simas, seria completamente desnecessária à trama, ao meu ver, talvez por ficar bancando a pantera dominadora a maior parte do tempo. Isso é ainda mais notório quando eles se separam, ela quase que é apagada da trama. Embora isso tudo seja cruel demais pra ser dito, o antagonismo entre os dois poderá render bons futuros frutos, pois eu tenho certeza que por mais que Verne tenha ficado excitado com as curvas da garota, aqui o dito dos "opostos se atraem" falará mais alto, mesmo que eles se recusem a acreditar nisso.
O livro é excessivamente dramático no começo, especialmente na construção da relação dos irmãos Vípero. A simbológica materialização da união dos dois através do pingente de sangue já seria suficientemente satisfatória pro leitor entender esse tipo forte de ligação entre os dois. Já pra quem gosta de melodramas, ficará então extasiado com o arco fraterno da trama, que chegou a me irritar. Uma das cenas que mais me irritou, pois bem, foi pela falta de força dramática, ainda que critico o excesso dela aqui; pois quando Verne se irrita com seu irmão, não me pareceu após a leitura desse capítulo que ele estava realmente bravo, achei até que ele usou de muito eufemismo e de palavras castas na sua bronca, causando, agora sim falando de excessividade, um ressentimento sem motivo no irmão boca aberta.
Mas passada essa melodramática fase as coisas parecem ficar menos tediosas, e ao reflexo do excitante prólogo, que me deixou pilhado logo de cara, várias tramas interessantes se destacam, movidas por violentas batalhas, as quais o autor não mede palavras para descrevê-las, e por sinistras descrições de locais e culturas exóticas, como o Covil das Persentes e o seu desbocado anfitrião.
Me permito a dizer que o arco dos Virleonos, um dos primeiros a serem abertos na segunda fase da trama, é o mais decepcionante, não por ser mal feito ou por ser sem graça, mas por chegar com toda a pompa e deixar-nos com poucas respostas. Uma visceral descrição dessa raça e dos costumes dela é primeiramente apresentada, seguida por um dos encontros mais flamejantes do livro. No final de cada capítulo eu literalmente me roía para que o vilão retornasse, e no fim, pois é... Achei até que eu teria a sorte de encontrar alguma coisa no epílogo, mas para meu azar, nada.
Outra interessante trama adjacente à história principal, conta à história dos Cinco, e a decadência dos ladrões. Foi um dos momentos que eu percebi que o autor estava finalmente desmembrado à trama, consciente do passado do local e do legado deixado às personagens atuais. Pessoalmente, acho que os ladrões se tornaram totalmente decadentes depois que as maldições foram sendo cumpridas, não sei se essa era a intenção do autor, mas eles não tinham mais um abrigo tão secreto assim, nem estavam em posição defensiva. Afinal muitos querem comer o couro deles em Necrópolis. Verne entrou e saiu, a mercenária entrou e saiu de lá, e ninguém se mexeu. Se houver uma vindoura guerra no futuro e ela virá, e esse povo não acordar, o Vilarejo com certeza será o primeiro local a cair.
Como eu já havia dito anteriormente, a trama não cumpre o papel de terror anunciado pelo alucinante prólogo. A história se permite escolher outros caminhos que se mesclam em torno da fantasia medieval e mitológica, unindo elementos de ficção científica (nota-se seu uso principalmente na robótica-orgânica do planador escarlate, que tem uma relação ao mesmo tempo mecânica, bélica e viva com a história). Tá bom, vire e mexe existe pitadas de terror, mas só pitadas, e também um pouco de violência barata Tarantinesca, o que é bem colocada na maioria das vezes, afastando todo a ingenuidade melodramática da primeira parte do livro.
O clímax do livro começa entre o fim da segunda parte e o início da terceira, sendo amarrado por três histórias bem empolgantes: a Travessia do Labirinto, o resgate de Absyrto e a Fronteira das Almas.
O labirinto é certamente como a mensagem deixada na capa do livro pelo gentil autor, a premissa de um interessante final para a trama. Após uma invasão aérea bem montada, digna dos filmes de ação de Hollywood, vemos os personagens se separando aos poucos, e nesses antagônicos caminhos os perigos começam a se mostrar colossais, ou melhor dizendo, maiores que a força que une os mesmos.
Do outro lado de Necrópolis, ocorre uma pequena batalha nas distantes geleiras, protagonizada pelos Mercenários e por Simas, essa já contando com terríveis armas de guerra, como os curiosos shelltorrs. Pena que ela dura tão pouco, e acabe tristemente. Não falo isso apenas por Marino, já que eu fiquei com dózinha do pobre duende torturado.
Voltando ao labirinto, a difícil travessia é cercada por elementos de terror e suspense que desembocam no aumento da coragem de Verne, que infelizmente até aquele momento só tinha sua faquinha. Coitado! Porém acontece um momento meio broxante no meio disso tudo, que pode ter passado despercebido se a pessoa não se envolveu demais com a trama. Esse foi a sutil descrição de Yuka – a fada, das Lâmias, feitas bem no meio da batalha contra as monstrengas, fada que ainda por cima estava ferida e fatigada; parecia que o autor estava forçando a personagem falar só pra não deixar os leitores perdidos.
Após toda a complicação que foi a passagem do labirinto, temos a trama mais fraca do livro na minha opinião. Talvez porque eu imaginava o conde sendo o oposto da ternura que ele representa, talvez porque eu imaginei uma trama mais desafiadora e com menos boa vontade alheia, talvez o nome Dantalion seja pesado demais para um cara tão legal. Será que foi de propósito? O freio poderia ser puxado nesse climax todo, e qualquer que fosse a trama dentro do Alcácer, ela poderia ser mais bem dificultosa e lenta do que foi.
O clímax final acontece no limbo e decorre de uma batalha entre Verne e o coveiro da Fronteira das Almas, me agradando de todas as formas, ao oposto da trama no Castelo. A composição metafísica do local e sua estranha dança de espíritos como se estivessem em uma linha de montagem prontos para serem abocanhados por um buraco negro, que os puxam além de suas vontades, me surpreendeu. Já que me bastam aquelas definições de infernos cheios de diabinhos com tridentes nas mãos.
O encontro com a alma do irmão foi quase que uma forma anestesiada do melodrama inicial, talvez porque Victor não pudesse mais ter emoções as coisas ficaram então mais frias, e a repentina batalha acabou resolvendo qualquer embaraço entre os dois irmãos; bem resolvida também foi a própria, que em uma jogada inesperada, tem o seu desfecho realizado dignamente com um final para o Guardião que nunca passaria pela minha cabeça. Final (ou alternativa) interessante também foi dado à alma do irmão, sendo que foi na hora exata em que eu saquei o que era o tal do Niyan, finalmente e em tempo!
Uma última reclamação de caráter bem pessoal, essa sentida e ressentida desde a leitura do primeiro parágrafo até a última página. Os personagens terrestres da história são italianos, e Verne vive em um vilarejo italiano, obviamente. Fiquei me perguntando: por que não brasileiros? Oras bolas, temos catedrais, temos vilarejos, e os ciganos também excursionam por aqui. Temos todos esses resquícios dos tempos românticos e neoclássicos usados na primeira parte da trama, mas não temos vez nessa história, tirando uma ou outra citação indireta ao nosso povo. Quem sabe um brasileiro não se perca por Necrópolis, e resolva ajudar Verne da próxima vez, hein? Essa é minha dica. ;D
Com muita coisa para se resolver e com dúvidas plantadas na cabeça dos leitores, na minha, já enraizadas, o livro clama, nem precisando-se ler o último gancho da história que acontece no epílogo, por futuras explicações que virão certamente nos próximos volumes. Prevejo que assim como a personagem principal que aos poucos vai se tornando mais madura, o autor e a sua escrita também irão amadurecendo juntos durante a criação da continuação dessa saga. Já até consigo visualizar lá na frente algo do tipo (...) como uma épica e sangrenta batalha contra o maligno Príncipe-serpente e seus comandos a tiracolo. Vai ser incrível!