spoiler visualizareth 10/02/2023
O Livro de Líbero é uma tragédia
Em uma minúscula cidade do interior fictícia em meados do século XIX, reside os Perim, uma família tradicional, porém peculiar em seus próprios modos. Enquanto Norma, a mãe de Líbero, é uma beata devota ao seu padre local e aos ensinamentos de Deus, cravada à realidade sólida de sua pequena cidade, Massimo, o pai, é fascinado pelo fantástico e pelo novo, apaixonado pelas novas histórias e vidas que podem se encontrar em livros e ao mundo afora, além de inteiramente dedicado ao Gazeta do Pausado, o jornal local fundado por Massimo. Líbero vive entre esses dois mundos, sendo seduzido por ambos em função de suas próprias crenças, mas acaba cedendo aos gostos do pai, e se torna um garoto esfomeado por novas histórias e pelo mundo ao redor. Até ser oferecido o livro de sua vida e perceber que não tinha vida sem ele.
O Livro de Líbero não é uma história bonita, tampouco inspiradora, mas acredito que seja disso que venha o seu valor. Uns dos temas do livro é claramente sobre escolhas e tempo, imutável e irreversível, temas que refletem inseguranças pessoais, e eu sabia que era inevitável até esse livro se tornar um dos meus favoritos, e realmente se tornou, além de tratar desses temas com habilidade e tato. Contudo, por tratar sobre o tempo, imutável e irreversível, a história me incomodou profundamente.
É trágico assistir uma vida sendo arruinada e desperdiçada, pois você sabe que aquele tempo perdido não voltará, e as decisões "erradas" continuarão sendo enfatizadas pelas consequências gritantes. Líbero decide que perdeu a sua vida no momento em que recusou o livro da sua vida e não pode voltar atrás, se afogando no seu arrependimento e culpa tão profundamente que nunca mais consegue nadar para cima - não para a superfície novamente, pelo menos. Mas de quem é a culpa de que Líbero perdeu a oportunidade de ter toda sua vida na palma das mãos? A resposta parece até óbvia, a culpa é dele mesmo, afinal, foi escolha dele. Mas era um garoto de onze anos, que acreditava fielmente nas palavras do pai. "Tudo tem seu tempo, Líbero", o que Massimo disse a Líbero uma vez, e ele carregou essa frase por anos até o dia do circo. E se arrependeu. Líbero não aceitou seu futuro pois acreditava que o pai estava certo, e que a vida não teria graça se ele soubesse o que iria acontecer a cada momento, mas assim que pronunciou aquele "não" e desceu a colina, talvez morro, percebeu que estava errado, que o pai estava errado, e que precisava daquele livro. Tarde demais. Na manhã seguinte o circo havia partido, e mesmo que Líbero tivesse voltado na noite anterior, o livro já tinha sido envenenado por sua simples palavra, morto.
Mas por que o livro, para começo de conversa? Em minha interpretação, não há vilão mais cruel que Baltazar, embora seja ele um senhor tão inofensivo, que está apenas cumprindo seu papel. Mas se Líbero não tivesse sido oferecido o livro de sua vida, muito provavelmente teria vivido uma vida sem culpa, não teria perdido sua infância, adolescência e tudo que vinha pela frente, pois ele não acharia que precisava de um livro que contava sua história. E mesmo para todas as oitocentas pessoas que aceitaram o livro, provavelmente perderam a chance de uma vida espontânea, cheia de surpresas, em troca de uma vida mecânica e metódica. É a perda da parte mais interessante de se estar vivo -- e isso vem de alguém que aceitaria o livro de sua própria vida se lhe fosse oferecido.
Líbero não deveria ter sido oferecido ao livro de sua vida, mas como foi, perdeu o gosto pelas histórias que poderia experimentar e pelos momentos que poderia vivenciar, pois só um livro lhe importava: o seu. Viveu em arrependimento, culpa, raiva, obsessão e medo de tomar qualquer decisão. Por mais que ele entendesse que o futuro era ele mesmo quem moldava, não parecia mais fazer sentido sabendo que poderia ter o livro da sua vida em mãos. Até que a bola de neve que se formou em sua adolescência se tornou grande demais e ele sentiu que a melhor opção era sair de Pausado. E aí Alfredo Nugent decide maltrata o leitor mais um pouquinho. Líbero não sai de Pausado para construir uma nova vida. Ele sai de Pausado para correr atrás de sua antiga.
Vinte e três anos depois, Líbero tem sua vida antiga em mãos, porém em vão. E Líbero morre. Não literalmente, mas de forma figurativa, o que consegue ser pior. Por um momento você tem a impressão de que a história vai te ensinar que nunca é tarde demais para mudar, para viver uma vida que valha a pena, mas o que vemos é a morte de Líbero mais de uma vez. Para mim, Líbero morreu definitivamente quando percebeu que correu sua vida inteira atrás de um livro que não lhe servia mais, mas então Rubio consegue retomar, aos poucos, as forças de seu amigo, que decide que sua vida não tem mais jeito, e decide viver outras vidas: as vidas nas inúmeras histórias nos livros de Massimo. Líbero morre aos poucos dessa vez, se perdendo, se deixando para trás. E então vai embora, deixando Rubio mais uma vez sozinho, e a si mesmo, que desapareceu em algum lugar nas ruas da abandonada Pausado.
A história teria sido mais impactante e trágica se Líbero tivesse retirado a própria vida de uma vez só. Em muitos momentos da história eu pensei que era isso que eu teria feito, já que não havia simplesmente mais motivo algum para viver. Mas isso acontece de qualquer jeito, só que com um ritmo leve e gentil, com um final pacífico, embora muito triste. Líbero pode até ter achado a única maneira de sobreviver largando totalmente de si, mas, na minha opinião, se em algum momento você chega a decidir que não vale mais a pena ser você mesmo, então viver já não vale mais a pena, pois as histórias dos outros nunca vão ser realmente suas.
O Livro de Líbero carrega uma escrita fácil e divertida, brincando com palavras e com frases (o que me encantou) e trazendo muito do vocabulário coloquial e contidiano. Mas é um livro cruel quando cutuca nas feridas de quem lê.