Coruja 29/07/2010Um novo olhar para o mundoTão logo comecei a ler O dia do curinga, percebi que teria de adotar o mesmo sistema de quando li O Mundo de Sofia: peguei um bloco de post-it, saí cortando pedacinhos das partes com cola e à medida que ia lendo, saía pregando nas páginas em que sublinhei alguma coisa (de lápis) para depois poder voltar a elas. Para completar, anotava todas as pistas num bloquinho de papel.
Sim, porque Gaarder sempre te dá um monte de pistas, te embaralha toda a cabeça e só responde as duas centenas de perguntas que vai jogando para ti no final do livro - isso se ele responde; afinal, isso é filosofia e você tem de ter também suas próprias respostas.
Eu gosto um bocado do Jostein Gaarder. Embora ele nem sempre seja de todo claro, ele nos estimula a pensar, a sentar e digerir por alguns instantes o que ele escreve. Não é - ao menos para mim - o tipo de livro que dá para ler numa única sentada (embora nem seja tão grande) e falo isso como um elogio.
Eu parei para fazer reflexões e tomar algumas decisões muito importantes à medida que ia lendo. Há várias passagens especialmente marcantes no livro e ele me deixou realmente balançada. É engraçado como, às vezes, um livro é capaz de fazer isso com você...
Há uma série de questões importantes que o autor nos coloca através do protagonista. Eu chamo a atenção para a "maldição da família", como o pai de Hans-Thomas fala, ou a herança do pecado original. Esse me parece ser um tema recorrente também na história - é algo que Hans-Thomas tem em comum com a história do livrinho; como seu pai pagou por um delito que não era o seu, da mesma forma que Albert.
Outro ponto também é a fascinação do pai com a idéia da existência... o pai de Hans-Thomas tem um olhar muito bonito, uma coisa assim... eu não sei exatamente como explicar... acho que é a consciência de ser humano e do mundo, do milagre que é ser um bípede relativamente inteligente caminhando por um mundo cheio de maravilhas - é um olhar sobre o mundo que o cinismo do cotidiano às vezes nos faz perder. Um olhar ingênuo, inocente - não no sentido de inexperiência, mas num sentido otimista e quase espiritual.
Ele parece dizer "Que maravilha sermos humanos, estarmos vivos nessa época, nesse mundo, capazes de desfrutar de tantas coisas, de tudo o que nos é oferecido por essa pequena esfrea navegando por um universo de estrelas e galáxias".
Agora me vem a cabeça uma citação de Hamlet que, acho, é perfeita para definir o que estou tentando dizer aqui: "Que obra de arte é o homem: tão nobre no raciocínio; tão vário na capacidade; em forma e movimento, tão preciso e admirável, na ação é como um anjo; no entendimento é como um Deus; a beleza do mundo, o exemplo dos animais."
Essa é uma visão bastante renascentista - na verdade, desde O Mundo de Sofia eu sempre penso em Gaarder como um típico homem do Renascimento, um humanista enfim.
Mas, ao mesmo tempo em que exalta essa visão de ser humano, constantemente em assombro de si mesmo, os personagens de O dia do Curinga parecem estar completamente perdidos. Não é só a mãe de Hans-Thomas, mas todo mundo. Acho que o único personagem que tem mais ou menos segurança de si mesmo é o Hans-Thomas, que, à época da história é apenas uma criança.
Ao final, O Dia do Curinga entrou na minha lista de favoritos. E sei quando for relê-lo, vou sentir a mesma ânsia, a mesma admiração, o mesmo frêmito de expectativa a cada página virada...