Flávia Menezes 19/06/2022
DR. JEKYLL E? DR. FREUD!
?O Médico e o Monstro? (título em inglês ?Dr. Jekyll and Mr. Hyde?), publicado em 1886, é uma novela gótica que foi escrita pelo escocês Robert Louis Stevenson, e sua ideia surgiu após um pesadelo, em que ele foi acordado pela esposa depois que ela o viu aos gritos, tendo sido escrita em apenas seis dias. Essa obra-prima não é apenas um clássico da literatura, mas também um clássico da literatura psicológica, uma vez que traz em sua gênese os conflitos da dicotomia psicológica do ser humano.
De leitura fácil, o livro é relativamente curto, e sua história não é recheada de grandes complexidades e reviravoltas, mas seu conteúdo traz intensas reflexões filosóficas a respeito da vida e do bem e do mal que estão presentes em todos nós.
Venho postergando essa leitura há tantos anos, especialmente após ver tantas opiniões não tão favoráveis sobre o livro aqui no Skoob, porém, preciso dizer, eu nem sei por que esperei tanto tempo assim, porque eu simplesmente amei essa leitura.
A narrativa é tão poética, tão sensível, que não foi surpresa alguma ela ter me prendido com tamanha facilidade. Confesso que sempre tive grande fascínio pelo tema, mas não esperava gostar tanto dessa história.
Para mim, o livro não peca em absolutamente nada. Sua história é contada de forma que expõe com maestria a questão da dicotomia desse conflito entre o bem e o mal que reside em todos nós (que é o tema proposto pelo livro), expressa de forma tão sensível nessa diferença corporal existente entre o médico Dr. Jekyll, e o monstro, Sr. Hyde.
Enquanto a bondade humana (ou o bem) é traduzida na figura do homem íntegro, alto, inteligente e bem-apessoado (Dr. Jekyll), o lado obscuro (ou o mal) é manifestado em um homem baixo, rude, sem escrúpulos e feio (Sr. Hyde). É tocante a forma como os sentimentos experienciados por cada uma dessas versões de um mesmo homem é descrita, e por vezes eu senti tanta compaixão pela toda dor e culpa sentidas pelo Dr. Jekyll, tanto quanto eu senti empatia ao tentar entender os sentimentos exacerbado que dominavam o Sr. Hyde.
Nessa magia da metáfora concebida por Robert Louis Stevenson, seu protagonista personifica uma das teorias mais importantes da personalidade humana, que é a teoria freudiana do Id, Ego e Superego, que só seria trazida por Sigmundo Freud muitas décadas mais tarde. Aliás, é impossível deixar de lado a forma como essa obra casa tão perfeitamente com a psicanálise.
Edward Hyde não é apenas um personagem alegórico, mas a personificação do Id, que se traduz pelo regimento do prazer. O que traduz com maestria o Sr. Hyde, já que este se revela como uma versão pecaminosa e imoral do ser humano, que demonstra total aversão aos nossos padrões morais e éticos.
Já Henry Jekyll se personifica como o Superego, que é a construção das internalizações de padrões de moralidade e ética que adquirimos ao fazermos parte de uma sociedade. O Dr. Jekyll é a própria visão do sacrifício e da renúncia aos impulsos pulsionais. E enquanto Dr. Jekyll representa a pulsão pela vida, Sr. Hyde é a pulsão de morte.
Robert Louis Stevenson foi um grande visionário ao criar essa obra, nos trazendo tanto a problemática do mal-estar na civilização, quanto da dificuldade do ser humano ser feliz vivendo em uma sociedade em que é preciso renunciar aos impulsos e desejos para alcançarmos a aceitação da ordem social.
De fato, quando dissociamos nosso lado instintivo, do nosso lado racional, apenas nos damos conta do quanto um precisa do outro para viver. Exatamente como o Dr. Jekyll não podia renegar o Sr. Hyde em sua vida, caso contrário, matá-lo seria como matar a si mesmo. A verdade é que o Sr. Hyde era o escape de que o Dr. Jekyll tanto precisava para liberar tudo que ele reprimia. O elixir era apenas uma desculpa para isso.
Terminar essa leitura me deixou nessa reflexão existencial de tudo o que reprimimos, de todo o medo e culpa que sentimos, todas as vezes em que agimos em desacordo com algo que não é socialmente aceito. E essa necessidade de aceitação é algo ao qual estamos fadados a buscar. Mesmo sabendo o quão prejudicial é seu efeito em nossas vidas. Porém, são essas regras, essa visão do certo e errado, que nos possibilita viver em sociedade.
Enquanto alguns não gostaram tanto dessa história, eu estou totalmente envolvida por ela, e por todo o significado nela contido e expresso. E confesso que seria tão bom que as pessoas deixassem um pouco de lado qualquer necessidade de mais ação, ou mais terror nessa história, para se abrir a todas as reflexões que ela nos proporciona. Afinal, seu tema nunca sairá de moda, e gerações e mais gerações ainda virão, e irão desfrutar de todo esse conhecimento que adquirimos apenas ao ler sobre ?O Médico e o Monstro''.