Luigi.Schinzari 18/11/2020
Impressões sobre Os Porões do Vaticano de André Gide:
Literatura, além de tudo, é diversão. Ler um bom livro deve ser primeiramente, antes de qualquer cunho crítico, reflexivo e filosófico -- fatores esses que consequentemente virão também caso seja verdadeiramente um bom livro --, um ato prazeroso. Em Os Porões do Vaticano (Les Caves du Vatican/1914) o autor André Gide (1869-1951) explora esse lado mais divertido da literatura sem deixar de lado as características que o fizeram entrar no cânone da literatura ocidental, como a metalinguagem, as reflexões acerca da religião e da política, sempre com muito bom humor, ironia e sarcasmo; não à toa, o próprio autor divertiu-se muito ao escrever a obra.
Voltada para um núcleo de personagens inicialmente isolados e que, ao longo da trama, vão se relacionando -- Anthime Armand-Dubois, um cético cientista; Amédée de Fleurissoire, um católico fervoroso; Julius de Baraglioul, um medíocre escritor; e Lafcadio Wluiki, um jovem misterioso com tons acinzentados em sua confusa moral e em suas intenções --, a trama é simples: há uma conspiração, aparentemente, envolvendo o papa; resulta-se daí uma busca quixotesca -- cega, ilógica e convicta -- para resolver esse possível mistério. Estender além disso seria revelar demais do livro, além de desnecessário. Baseado nessa trama, Gide mistura essas confusas personagens num cerco de intrigas entre religião, seitas e família, intrincadas pela leveza da escrita primorosa do autor com ares de comédia barroca, por outras tantas de uma investigação policial, e por vezes como uma peça teatral.
Gide, assim como em sua obra-prima Os Moedeiros Falsos (1925), já demonstrava seu interesse por explorar a linguagem do romance. Há aqui em Os Porões do Vaticano uma busca por compreender e elevar ao máximo os limites dos instrumentos que a prosa oferece ao autor, sendo Gide um dos mestres do uso da metalinguagem dentro da literatura, utilizando-a de forma muito refinada com piscadelas sutis ao leitor atento. Fica nítido ao ler Os Porões do Vaticano o conceito de mise en abyme, termo que, traduzido, significa algo como narrativa em abismo, e foi criado por Gide ao falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. Neste livro, o recurso centra-se, principalmente, em Julius de Baraglioul, um autor que luta contra a mediocridade, que é um porta-voz de Gide para explorar toda sua maestria na prosa, servindo já como um ensaio ao que viria a realizar futuramente em sua obra-prima mais de uma década depois, com a figura de Édouard.
É difícil até mesmo assumir que há um protagonista na obra, mas, caso precisássemos decidir qual personagem assume tal função, facilmente escolheríamos Lafcadio, muito por conta de toda sua confusa jornada. Sem revelar muito da trama, fica nítido ao leitor como Lafcadio serviu de inspiração a conceitos vindouros do absurdismo de Albert Camus, sendo o personagem de Gide uma inspiração direta, sem dúvidas, para um Meursault de O Estrangeiro (1942), por exemplo, para aqueles que já tiveram o prazer de ler a obra do autor franco-argelino e comparar com o romance de Gide. Lafcadio, guiado pelas sensações do momento, comete caprichos injustificáveis e que quebram o progresso de determinada trama, assim como na vida: nem tudo segue uma ordem lógica, sendo geralmente incompreensível os rumos assumidos por nós ou que somos obrigados a assumir por alguma razão que nos foge a razão. Lafcadio é um alerta eterno durante o decorrer do romance de como é uma sociedade amoral e sem rédeas éticas, aprove-a ou não: é um retrato dessa figura teórica.
A fusão de gêneros e tons cômico-dramáticos que Gide dá a sua obra é o principal atrativo nela. Ele consegue guiar o leitor por tramas cada vez mais absurdas e irreais, mas sempre mostrando: Preste atenção: não é bem assim, enquanto não oferece aos personagens esse luxo; eles são enganados durante toda a obra, seja pelas outras personagens, seja pelo próprio autor, que age como um deus fanfarrão que só quer levar suas personagens às mais absurdas situações para seu próprio prazer -- daí ter sido tão divertida sua escrita, acredito. E, ao leitor, tal diversão é semelhante: acompanhamos como espectadores fiéis a crescente no caos que aquele núcleo de personagens vai tendo, com tramas que coincidentemente -- e eles mesmos percebem essa linha de coincidências forçadas e propositalmente descabidas que os ligam -- vão ligando-os e afunilando-os, com um porém: nunca termina como gostariam; na verdade, vai além da questão de gostar ou não, acontecendo situações em que simplesmente ocorrem pelo puro acaso e capricho de outras personagens e, principalmente, do titereiro onipresente que os guia, ou melhor, que os escreve -- para nosso puro deleite. Jamais esqueçamos de nos divertir com o absurdo da vida -- e são muitos e geralmente não o resolveremos nem o entenderemos --, creio que falar tal mote é um dos papéis de Os Porões do Vaticano.