Fé no Inferno

Fé no Inferno Santiago Nazarian




Resenhas - Fé no Inferno


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Laura 08/06/2020

Ótima leitura
Já aprendi muitas coisas com livros de ficção, essa é uma das maravilhas de ser um leitor, afinal. Em “Fé no Inferno”, livro nacional escrito por Santiago Nazarian, por exemplo, eu aprendi sobre o Genocídio Armênio, o massacre de armênios cristãos pelo governo otomano durante a Primeira Guerra Mundial.

Cláudio, nosso personagem principal, é um jovem cuidador de idosos com um passado difícil, que em seu novo trabalho conhece seu Domingos, que talvez seja um sobrevivente desse massacre, ou pelo menos, é fascinado pela essa parte da história do seu povo, a verdade depende de quantos anos você acredite que ele tenha. Vamos nos educando junto com Cláudio, que como a maioria de nós, presumo, também não sabia nada sobre esses assassinatos em massa do século passado, e do mesmo jeito que nós vamos aprendendo com um livro, Cláudio também vai, lendo um relato de uma criança sobrevivente desse tempo sombrio, obra emprestada da biblioteca do seu Domingos.

Assim o livro se divide em dois: lemos a história de Cláudio, e a história que o próprio Cláudio está lendo. Quando o livro possui duas perspectivas, é sempre um bom sinal quando eu fico triste que o capítulo de uma tenha acabado, mas animada que o da outra perspectiva esteja começando e, felizmente, essa foi minha experiência lendo esse livro. Gosto como na narrativa ele retoma trechos, mas em outros contextos. É uma história sofisticamente construída, as duas partes dela bem entrelaçadas uma com a outra.

Uma coisa que eu sempre acabo prestando muita atenção em livros escritos em português são os diálogos. Nossa língua escrita é muito diferente da nossa língua falada, o que faz escrever diálogo realistas uma tarefa difícil. Mas nesse livro não houve nenhum momento em que estranhei a fala de um dos personagens, na verdade, o que me chamou a atenção foi justamente a naturalidade das conversas, principalmente quando se trata do Cláudio: o jeito que ele fala, sendo um jovem adulto de 22 anos, é exatamente como um jovem adulto de 22 anos tende a falar, e eu posso atestar a isso porque também sou uma jovem adulta de 22 anos. Outros personagens também possuem características um pouco mais marcantes na fala, e durante a leitura fiquei feliz em ver que nada soava forçado. Eram apenas pessoas conversando. Parece uma coisa óbvia, algo que um livro sempre deveria fazer, mas não é essa a maioria dos casos, por isso é sempre bom destacar.

Minha ressalva com esse livro são mínimas. O autor tomou algumas decisões criativas estranhas durante a narrativa, nada demais, literalmente algumas frases e parágrafos soltos, mas que me tiraram completamente da história, e justamente por serem momentos “aleatórios”, digo, que não impactavam a história de qualquer maneira significativa, eu não consegui entender o porquê delas estarem ali. Por exemplo: em um momento em que estamos na narrativa da guerra, presumidamente escrita pelo seu Domingos, que nada sabe sobre cultura pop, ele cita que um soldado “caçava pokémons em seu Game Boy Color”. Tem também um parágrafo desconcertante sobre o que o menino fazia com uma cabra e a frase “Cláudio tateava como um autista com diarreia num banheiro sem papel higiênico”. Coisas que saltam aos olhos, esporadicamente, que eu ainda não entendi porque sobreviveram as sugestões do editor.

Mas voltando aos elogios: os personagens em “Fé no Inferno” são muito bem construídos. Amo Cláudio, amo seu Domingos. E esse é um livro sobre traumas, trauma de ser uma minoria, de ser um “carneiro” apenas, a mercê do que os outros podem fazer com você. É um livro sobre sobrevivência. Sobre se levantar para depois morrer outra vez, e se levantar de novo. É um livro cheio de dores, mas também sobre como sua vida pode ser boa, apesar de tudo isso.

Se você se interessa minimamente por história, essa leitura vale a pena. Se você gosta de ler sobre personagens complexos e realistas, essa leitura vale a pena. E se você gosta de boa literatura nacional, fico feliz em dizer, essa leitura vale muito a pena.

site: https://www.instagram.com/bookish_creature/?hl=pt-br
Douglas 26/06/2020minha estante
Eu tenho uma teoria pras frases soltas que te desagradaram, como a do gameboy. Acho que tudo só faz sentido no final, e espero não estar dando spoiler. Mas, um amigo da faculdade do Cláudio dá a dica... ele comenta que muitos jovens contribuíram pro texto de Domingos. Lembra?


Laura 26/06/2020minha estante
Hmmm.... Sim, realmente, pode ser!




Tiago 11/10/2020

As mil e uma noites de Santiago Nazarian
Não há terror maior que a história de um genocídio. Por isso, não é de se estranhar que a transição de Santiago Nazarian para o realismo esboçado em "Fé no Inferno", seu mais recente romance, se dê ainda com uma boa dose do terror que lhe rendeu títulos como os últimos "Biofobia" (2014) e "Neve Negra" (2017).

Intercalando capítulos realistas com outros mais alegóricos (que em seus melhores momentos me lembraram um improvável encontro entre a literatura Safran Foer e o cinema Lars von Trier), Nazarian dá um salto ambicioso em sua prosa e se propõe a narrar o genocídio armênio, historicamente anterior ao judeu e menos privilegiado que este na memória coletiva do século 20.

Brasileiro descendente de armênios, Nazarian constrói um paralelo interessante entre dois genocídios - o armênio e o americano - ao escolher um jovem brasileiro com ascendência indígena como narrador de seu livro. Cláudio é um empenhado cuidador de idosos contratado para fazer companhia a Domingos, um senhor armênio de idade indefinida que vive nos Jardins, na zona nobre de São Paulo. Suposto sobrevivente do genocídio armênio, seu Domingos vive sua velhice numa biblioteca cheia de livros, escritos todos com versões de uma mesma história: o massacre perpetrado pelos turcos ao seu povo, no contexto da Primeira Guerra Mundial.

Para além da questão étnica, Cláudio carrega um outro estigma que aproxima seu drama do de Domingos: a homossexualidade. Do seio de uma família evangélica, Cláudio foi abusado na infância e teve passagens por instituições penais antes de se dedicar à sua profissão, que veio justamente em consequência dos imbróglios judiciais pelos seus atos. Vivendo com seu namorado artista numa quitinete no Baixo Augusta, contemplando a ascensão do bolsonarismo num Brasil que flerta descaradamente com o fascismo de outros tempos, Cláudio não é apenas o sobrevivente de um genocídio do passado: mas de um genocídio em curso, de indivíduos iguais a ele.

Um laço de empatia vai se firmando entre Cláudio e Domingos à medida que o cuidador passa as noites no apartamento da família, lendo um dos livros que retirou da estante do velho quando seu game portátil já não era distração suficiente para as horas mortas em que atuava como "extintor de incêndio de um carro estacionado" - o idoso, que exibe uma saúde sobrenatural, como que renovada por uma lata de amêndoas que guarda e vampirizada pela sobrinha-neta, de olho em sua herança.

Talvez a resposta para a juventude eterna de Domingos esteja nas parábolas daquele livro, que quando Cláudio abre nos coloca numa posição isomórfica à dele: como o sultão que se torna escravo das histórias de Xerazade em "As Mil e uma Noites", nós - leitores de "Fé no Inferno- nos vemos também escravizados àquele livro, só acessado pela leitura de Cláudio. À parte não conseguirem manter a mesma potência que têm no início, derivando cada vez mais para a alegoria, fugindo um pouco da crueza visceral das primeiras páginas, são as narrativas daquele livro, supostamente escrito por Domingos, o motor do romance: o que nos mantém rondando a armadilha, até o ponto que somos devidamente capturados e já é impossível não terminar o livro (bem mais longo que os anteriores de Nazarian: com quase 400 páginas).

Próximo ao final, a "ficção" de Domingos vai se tornando menos interessantes que a "ficção" que temos nas mãos, de Cláudio (cujo passado, felizmente, vem em nosso socorro, como um novo abismo dentro do abismo). Mas aí a lâmina do sultão já descansou e está nas mãos da Xerazade: Nazarian, que nos brinda com seu epílogo que dá uma dimensão quase bíblica a toda esta história.

site: https://medium.com/@tiagogermano/as-mil-e-uma-noites-de-nazarian-edf12fdda97e
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Douglas.Soares 07/11/2020

"O que faz de um armênio, um armênio?"
Esse livro tenta responder com suas duas narrativas paralelas, distintas, que abrem espaço pro realismo e pro fantástico. É bonito ver a narrativa ganhando fôlego, deparando-se com animais que falam sobre um genocídio que nem os homens conseguem assumir que existiu.
Uma boa história... e bons aprendizados.
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Lendo no mato 15/04/2021

Toda criança merece o inferno.
Assim, com essa frase impactante começa o livro.

Mais um do Santiago Nazarian que leio, provavelmente o único autor brasileiro que acompanho. É o 4° livro dele que leio.
Esse é de longe o maior, mais trabalhoso e audacioso de seus livros. Ele fez uma pesquisa histórica imensa para produzi-lo.
O livro se passa uma parte no Brasil em 2017, através dos olhos de um cuidador de idosos e seu paciente, um senhor armênio. O que serve de link para contar a história do genocídio armênio pelos turcos durante a 1° Guerra Mundial.
Momentos que aparentemente nada há de incomum, exceto por serem ambos "tempos onde minorias são perseguidas, nativos são expulsos de suas terras e que a religião majoritária se impõe sobre todo um povo".

Minha impressão sobre o livro é bem mecanicista: Gostei da parte da 1° Guerra e todo o relato sobre o genocídio armênio, é quase um conto de fadas, me lembrou o relato de Edward Mãos de Tesoura; mas a parte da relação entre o cuidador e o senhor armênio em 2017 ficou muito caricata, padronizada demais e com uma escrita bem basicona, acho que pra talvez conversar com um maior número de leitores e isso me incomodou, fora o excesso de mini capítulos.
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Cassionei 24/04/2021

A FRÁGIL CONDIÇÃO HUMANA
O leitor acredita no Inferno, com letra maiúscula? No da Bíblia? No inferno de Dante? No Hades da mitologia grega? Acredita que o inferno são os outros, como na peça de Sartre? Crê que o inferno é aqui, como na canção do Lulu Santos? Ou que o inferno está dentro de nossa própria cabeça, como afirmou um personagem de um romance de um escritor desconhecido?

“E para quem segue as regras divinas, o Inferno está em cada esquina”, lê-se no primeiro parágrafo do mais recente romance de Santiago Nazarian, “Fé no Inferno” (Companhia das Letras, 376 páginas). É um trecho do livro que Cláudio, o protagonista, pega na estante da biblioteca de um senhor de mais de 90 anos do qual está cuidando, ou melhor, acompanhando, considerando que o velho, o seu Domingos, na verdade não necessita de cuidados. A profissão de Cláudio é cuidador de idosos. É um jovem de 22 anos morando com o namorado 20 anos mais velho, pois recebe um baixo salário e não pode pagar um aluguel, gosta de games e por causa da bateria do aparelho de jogo que está acabando, atende à sugestão do patrão: “... é só um livro, Cláudio. Leia. Talvez você ache interessante”.

Não é, porém, só um livro, como aos poucos o agora leitor Cláudio vai descobrindo. Tratam-se de histórias narradas por um sobrevivente do genocídio na Armênia em 1915. No início, é um menino que escapa com o irmão mais velho (reparem que sempre há alguém mais velho no romance, de certa forma representando a figura do pai ausente ou a autoridade, inclusive o protagonista tem um irmão mais velho, que será peça importante no enredo) de uma das matanças e passam fome enquanto escapam dos turcos. Depois a narrativa segue o caminho do realismo mágico, do fantástico, do absurdo, inclusive com elementos estranhos à segunda década do século XX, o que nos faz questionar quem a escreveu. Por outro lado, há semelhanças entre a própria vida de Cláudio e a do garoto armênio (“... a mesma história contada de diversas maneiras”). Sua casa no morro, junto com tantas outras, também foi queimada, seu pai morto, dessa feita por policiais. O Inferno, segundo sua mãe, merecido pelos seus pecados. Além disso, o menino era perseguido por ser de outra etnia e Cláudio sofria preconceito por ser descendente de índios e homossexual.

Por falar em mãe, algumas figuras femininas são masculinizadas, às vezes parecendo apagadas ou com certa autoridade que incomoda os protagonistas, tanto o do presente como o do passado: além da mãe evangélica de Cláudio, há as empregadas do seu Domingos e sua sobrinha-neta, Beatriz (nome não escolhido por acaso, assim como de um enfermeiro também contratado para cuidar do velho, Virgílio); uma psicóloga que lembra muitos negacionistas para quem tudo é “mimimi”; a viúva que se passa por homem e come criancinhas durante a guerra; a “Diadorim” armênia que se veste de menino para sobreviver; só para citar algumas que aparecem e desaparecem nas duas histórias narradas.

Os capítulos são curtos, ora abordando o tempo atual, ora voltando para o passado, do Brasil para a Armênia, de Cláudio e seu Domingos para o menino sobrevivente, numa linguagem bem trabalhada, uma narrativa que flui leve, apesar dos temas pesados. Se o escritor buscou esse efeito estético, conseguiu com maestria.

Há pouco tempo, meu avô faleceu aos 91 anos e, nos seus últimos dias, alguns dos quais passei com ele no hospital, presenciei as enfermeiras trocando suas fraldas, limpando suas partes íntimas, machucadas devido a assaduras, e ele apenas chorava, não podendo se expressar de outra forma devido ao AVC que o vitimou. O romance de Nazarin me transportou para esses dias tristes e me fez refletir sobre a fragilidade humana, que é física nas duas pontas (criança e velho) e psicológica no meio. Somos seres frágeis em um mundo absurdo, este mundo que talvez seja o verdadeiro Inferno.



site: https://cassionei.blogspot.com/2021/04/a-fragil-condicao-humana.html
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