mpettrus 27/10/2021
Uma Longa Carta de Despedida
“Paula” é um romance memorialístico em que Isabel Allende conta de maneira autobiográfica e biográfica a história de sua família recheadas de lembranças alegres, dolorosas, por vezes, carregadas de humor, para dosar uma narrativa que prioritariamente é melancólica, mas também cheias de lições de vida sem cair na pieguice e no lugar-comum, para sua filha Paula, que entra em coma irreversível por conta de uma doença.
Nesse romance autobiográfico, Allende escreve sobre o processo da escrita e a possibilidade de falar de si mesma por meio de seus livros, sendo que no decorrer da narrativa a autora faz uma construção da própria história e da história de sua filha, resgatando a origem de seus antepassados. Pode-se dizer que esta obra literária se refere à autora de uma forma muito particular, podendo ser considerada como uma construção ficcional que ela faz da própria história.
O romance também dá a Allende o espaço para deixar suas emoções palparem em cada página, por vezes, numa descrição em prosa poética como raras vezes leio dentre tantos autores por esse mundo. O realismo mágico, característica tão marcante da literatura dessa autora, também aparece nesse romance, que embora seja não-ficcional, aja vista, ele possui um forte caráter autobiográfico e biográfico, mas é a honestidade emocional crua que torna este livro de memórias especial. Combine isso com o núcleo de aço da história pessoal da família que o atravessa e “Paula” torna-se não apenas um excelente livro, mas também uma introdução acessível à história chilena em geral.
Outro ponto que merece ser destacado nesta obra é o quanto a autora se mostra identificada com seu avô. Ela lembra que ele era um grande contador de histórias, dotado de humor negro, capaz de contar cenas horripilantes soltando altas gargalhadas. Os casos acumulados durante tantos anos, os principais acontecimentos históricos do século, as extravagâncias da família, os infinitos conhecimentos que adquiriu em suas leituras proporcionaram à neta material suficiente para escrever muitos livros.
Nesse romance, também percebemos o quanto a autora vai juntando os restos de sua história buscando manter presente aqueles a quem perdeu, ao mesmo tempo em que tenta lidar com a sua ausência – seja ela física ou psíquica, referindo-se à morte dos avós, ao desaparecimento do pai, ao desaparecimento do irmão, à separação do esposo, às constantes mudanças de país, ao exílio durante o Golpe Militar no Chile, à perda dos sogros, às perdas materiais, dentre outras perdas que teve durante a vida.
Ao longo da narrativa, Allende luta contra a sua própria sensação avassaladora de isolamento, que ela imagina como uma incapacidade de se comunicar verbalmente. No entanto, por meio do processo de escrita, ela não apenas tenta divulgar suas próprias experiências pessoais de ser mãe e cuidadora, mas também tenta criar um espaço alternativo no qual a voz de sua filha possa ser ouvida. O romance tem uma forma dialógica: a primeira seção do texto é enquadrada como uma conversa falada, quando a autora começa a narrativa “ouça, Paula”, inicia um forte senso de intimidade, o que nos faz sentir como parte da história, como um cuidador da personagem-título. Essa foi em si a magia mais incrível desse romance.
“Paula” tem 376 páginas, sendo dividido em três partes: Parte I (dezembro de 1991 a maio de 1992); Parte II (maio de 1992 a dezembro de 1992) e o Epílogo (Natal de 1992). Allende nos mostra nesse romance uma multiplicidade de vozes e gêneros, sendo que a autora insiste que tanto sua mãe quanto Paula são, em certo sentido, coautoras da narrativa, ou seja, é a existência de uma narrativa dupla, além de mostrar presente e passado caminhando de mãos dadas o tempo inteiro, cabendo a nós leitores distinguir o que ocorre no presente e o que ocorreu no passado. Esse recurso estilístico confere mais beleza ao texto da Allende trazendo assim mais verossimilhança à conversa com a filha.
A trajetória de vida da autora é de tirar o fôlego. Além de sabermos segredos de suas produções literárias, seus macetes, suas superstições, também lemos sua admiração por Pablo Neruda e Gabriel García Márquez, dois dos quatro autores sul-americanos que venceram o prêmio Nobel de Literatura. Bonito e emocionante, confesso que chorei em determinadas partes lendo essa melancólica, triste e igualmente doce e alegre longa carta de despedida de uma mãe para sua filha.