Yeda 18/08/2022
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Jia Tolentino trouxe uma visão sagaz e fresca sobre os assuntos que ela se propôs a escrever em seu livro. Eu nunca havia lido conjuntos de ensaios dos quais eu não gostasse, mas esse foi revigorante.
Em "Falso Espelho" os assuntos tratados são aqueles que interessam à sociedade, mais especificamente mulheres: dependência da internet, feminismo, roupas de ginástica, política, casamento, e outros temas que são desenvolvidos sob a perspectiva pós Y2K. Suas opiniões são revigorantes, adequadas e modernas. Suas citações para embasar um argumento vão de Emma Bovary à Miley Cyrus, passando por artigos e pesquisas que enriquecem a leitura.
Apesar de ser uma leitura densa e um pouco mais lenta devido à enorme quantidade de informações que precisam ser absorvidas, a leitura não é maçante. Ao invés de parecer que alguém está tentando mostrar que sabe mais do que você, ou que são apenas opiniões que surgiram na cabeça de alguém e foram escritas sem nenhuma supervisão(como vários ensaios que eu já li), a sensação é de que você está conversando com uma amiga, que conversa sobre os assuntos que te interessam, e que traz pontos de vista interessantes.
Em nenhum momento a autora se colocar em uma posição moralmente superior ou julga as mulheres que fazem parte do que ela critica, já que ela se insere no mesmo grupo que todas nós. Então, quando ela critica o uso indiscriminado da internet e o fato de que hoje as pessoas não se importam se você é ativista, contanto que você dê RT em conteúdo ativista, ela sabe que também faz parte da sociedade que depende da internet para ter uma personalidade, das pessoas que têm distorção de imagem por causa das fotos retocadas no instagram.
É claro que o livro é escrito sob o viés feminista, mas ele também critica o feminismo em seus pontos mais vulneráveis e mais controversos; por exemplo, ela critica arduamente o fato de mulheres se esconderem atrás do feminismo para tomar decisões que impactam o coletivo:
"E o feminismo reiteradamente tentou deixar certos aspectos da discussão fora dos limites da crítica. Ele valorizou tanto o sucesso individual, enfatizou tanto as decisões pessoais, que criticar qualquer coisa que uma mulher escolha para se tornar mais bem-sucedida é visto como uma atitude não feminista, mesmo em situações como essa em que as escolhas das mulheres são ditadas tanto pelas expectativas sociais quanto pelos arbitrários custos da busca pela beleza, busca que é mais gratificante se você for, para começar, jovem, rica e convencionalmente atraente."
A mulher ideal, a modelo de instagram que reforça a pressão estética ao mesmo tempo em que é vítima mas também se beneficia desse padrão foram debatidos de maneira muito, muito sensata. Também há algumas páginas que se dedicam a explorar o conceito mais obscuro do feminismo, as "girlbosses", e dentro dessa parte, ela mostra a incongruência do "feminismo capitalista":
"E então, numa época de liberdade e poder feminino sem precedentes, numa época em que estamos mais preparadas do que nunca para enxergar nossa vida sob um viés político, nós temos, em vez de mais direitos reprodutivos, igualdade de salários, licença de assistência familiar obrigatória, cresches subsidiadas e um aumento no salário mínimo, apenas o tipo de empoderamento feminista autocongratulatório que as empresas podem apoiar, o tipo que vem com as mercadorias ? canecas com as palavras 'Lágrimas Masculinas', camisetas com as palavras 'Feminista Fodástica'.(Em 2017, a Dior vendeu por 710 dólares uma camiseta que dizia 'Sejamos todos feministas'.)"
A autora me surpreendeu ao definir as gerações pós-internet por golpes famosos. O que o Fyre Festival dizia sobre a nossa condição atual em termos de sociedade? Como o Facebook nos isolou mais do que nunca ao passar uma sensação falsa de conexão? Por que as girlbosses são vendidas como feministas e por que elas não são?
Outro ensaio muito interessante é a heroína trágica das histórias adultas. Sim, aquela personagem que está presa a um casamento, não tem direitos, trai o marido e se suicida no final. Aquela personagem que na verdade são várias! Qual o motivo de Bovary, Karenina e Pontellier terem um caminho tão parecido? E afinal, como essas histórias pavimentaram as novas heroínas que apesar de terem fins diferentes, passam por situações muito parecidas daquelas escritas nos séculos passados?
"As heroínas das últimas décadas têm se preocupado com as mesmas questões relacionadas a amor e constrição social; elas apenas respondem a essas perguntas de maneira diferente. A ficção contemporânea sobre as mulheres não reflete ou subverte o texto da heroína; ela, na verdade, explode o conceito, recriando e manipulando a maneira pela qual a construção narrativa influencia a ideia de individualidade feminina."
Uma das coisas que mais me agradaram nesse livro foi o fato dela ter escrito sobre sua bolha , reconhecido isso e expandido para um número maior de pessoas, como situações que são recorrentes e vividas por inúmeras mulheres, mesmo que possuam detalhes diferentes. O exemplo mais claro disso é o ensaio sobre um estupro na Univerdade da Virgínia, instituição em que ela se formou. Tolentino denunciou a incolumidade das fraternidades e os estupros cometidos por homens que saíram ilesos. Apesar do caso citado ter acontecido nessa universidade, não é difícil relacionar com casos que aconteceram em todo o mundo: a negligência da polícia, a suspeita em relação a vítima, as punições piores aos homens negros e a impunidade dos homens brancos. Além disso, ela traz informações antigas para comparar com a situação atual e formar um raciocínio se as coisas mudaram tanto como acreditamos, ou se na verdade estamos mais perto das décadas em que as mulheres não podiam nem votar se não tivessem o sobrenome do marido.
Se eu tratar de todos os assuntos que ela trouxe nos ensaios, seriam inúmeras páginas. Tudo que eu posso dizer é que me senti contemplada, compreendida e com mais informação depois dessa leitura. Discordei em alguns pontos(na verdade só um) da autora, mas mesmo assim ela não estava com um raciocínio absurdo. Não diria que esse livro é um manual da mulher moderna, mas que é um livro que precisa ser lido pelas pessoas, especialmente pelas mulheres; vários dos assuntos que ela trata não são novidades, mas o formato usado para expressar esses temas conhecidos são revitalizantes e detalhados.