Jivago 12/01/2022Por que Werther persiste?Neste romance epistolar somos apresentados ao jovem Werther, um jovem romântico e de sensibilidade aguçada, amante dos livros, da natureza, que Goethe elabora como uma personagem de cunho intelectual, quase elitista. As cartas enviadas a seu amigo Wilhelm – outro famoso personagem do autor – dão conta de seu encontro com uma bela jovem, Lotte, pela qual irá nutrir uma paixão de cunho autodestrutivo.
Através desse enredo genérico, temos por todo o romance a exímia exploração, por parte de Goethe, daqueles traços que viriam a marcar a identidade do “ser romântico”: idealização da musa, exaltação da natureza e do passado como formas de escapismo, a intensidade subjetiva e/ou afetiva, a adoração de modelos heroicos clássicos (a grande referência de Werther é Homero e seu Ulisses), e a valorização de uma espécie de isolamento existencial que acomete àqueles dotados de tal postura diante da vida.
No entanto, para além da superfície as coisas se complicam. Goethe aparenta estar mais interessado em desenvolver um estudo sobre o caráter insondável das forças que nos dão forma: que nos atravessam e através das quais agimos; interessa ao autor demonstrar como uma série de fatores que vão desde propensões individuais até o agravamento de circunstâncias confluem para dar relevo à ideia de uma irracionalidade subjacente ao fenômeno da vida, que não pode ser completamente apreendida mesmo por aqueles que se querem gênios ou portadores de sensibilidades distintas. Aí reside o desafio para o ser romântico e a revelação de sua falta de destreza para sanar o descompasso entre interioridade e exterioridade e quais consequências isso pode trazer, tanto para ele, quanto para aqueles que o cercam.
Werther e Lotte poderiam ter sido felizes como nos levam a crer em seu último encontro, mas quis o destino que Lotte, ao conhecê-lo, já estivesse compromissada com outro alguém. Não sabemos por que somos como somos, ou porque queremos o que queremos, ou ainda, por que desejamos como desejamos, isto significa que muitas vezes na vida o “tempo do mundo” não casa com o nosso tempo. A verdadeira sensibilidade amadurecida talvez residiria em saber como suportar isso e ainda assim conseguir viver bem, em paz, buscando uma harmonia possível entre a vida interior e o que racionalizamos como “exterioridade”.
A primeira frase da carta que abre o romance já nos fornece uma chave de leitura. Werther fala ao amigo Wilhelm: “Como estou feliz por ter partido. Caro amigo: o que é o coração do homem?” (p. 21). Pode soar óbvio, mas só uma literatura dita “romântica” seria capaz disso. A pretensa exaltação da individualidade aguçada cai por terra: transfigura-se no sujeito enfraquecido que não é capaz de imaginar a vida, uma vida, distinta da configuração ilusória que ele cria em seu imaginário pessoal e que vislumbra como inconteste.
É assim que o romance tem início com uma dupla exaltação: da liberdade do indivíduo e da grandiosidade da natureza. Ambos são fenômenos a serem contemplados e um parece reforçar o outro. Werther se entende, ou quer se entender, como uma sensibilidade autônoma, capaz de sorver a beleza da vida enquanto aprecia sua solidão. A grandiosidade que proclama em relação à natureza só se equipara àquela que encontra dentro de si. O efeito intencionado por Goethe é o do contraste: essa psique sem amarras logo passa a enxergar o mundo de uma maneira limitada, sua paixão lhe impede de ser quem outrora achava ser, de agir como outrora achava possível e sua liberdade é completamente obliterada à medida que passa a existir em função da contemplação do ser amado. Quanto à desilusão, Werther declara: “O sentimento pleno e caloroso do meu coração diante da natureza, que me inundava com tanto deleite, que transformava o mundo em volta em paraíso, agora tornou-se uma punição insuportável, um espírito torturador que me persegue por todos os caminhos” (p.95).
Correndo o risco de ser reducionista demais aqui, acho que o núcleo da obra pode até ser bem simples se abrirmos mão desse apego aos tais traços românticos: nessa grande investigação sobre a alma humana que vai ganhando forma, o que testemunhamos, na verdade, não são os traços definidores do romantismo, mas o esfacelamento de uma subjetividade incapaz de reconhecer limites, de entender o que significa ser livre e conviver, isto é, coexistir, num mundo que teima em se apresentar a partir de uma complexidade que em vários momentos contradiz sua natureza. Essa complexidade não é uma possibilidade aos olhos do ser enamorado tal qual se nos apresenta Werther e isto atesta, na verdade, toda a vacuidade de sua pretensa elevação em relação aos demais. O fim: a autodestruição, é claro. A impossibilidade da paixão, para Werther, necessariamente deve-se traduzir em impossibilidade de existência.
Pelo modo como Goethe dá contornos particulares às suas personagens, mas também pelo modo como cria cenários, como distribui acontecimentos pelo tempo, e ainda pelo trato da questão do amor e suas dificuldades, além de ser um retrato atemporal dos sujeitos enamorados tentando fazer sentido de si mesmos e do mundo, o romance vale a pena. Fica a dica para quem quer se aventurar com Goethe e entender as razões pela qual a obra resiste à prova do tempo e vem se afirmando como um clássico há 250 anos.