mpettrus 14/12/2022
?Ambivalência Contraditória?
??O Processo? de Kafka foi à leitura mais perturbadora e surpreendente que eu li em 2022. Fiquei na dúvida onde situar esse romance, qual seu gênero. Cheguei a um resultado inconclusivo dos meus questionamentos de que se trata de um romance distópico, não necessariamente de ficção-científica, mas uma espécie de subgênero da própria distopia. A famosa frase de abertura do romance inicia a narrativa com um tom de suspeita que permanecerá impregnado na visão do protagonista ao longo do livro.
O romance conta a história do bancário Josef K. que se vê, de súbito, processado pelo Estado sem saber o motivo. Tal fato inaugural do romance se dá quando Josef K. acaba de completar 30 anos, sendo detido em seu próprio quarto por dois guardas, e neste momento começa o pesadelo do personagem, que cai numa situação absurda na qual teria que tentar descobrir as motivações desse processo, haja vista, ele não ter feito ?mal algum?.
Interessante notar que K., como será comumente chamado no decorrer da narrativa, ao indagar os guardas do porquê de sua prisão, estes não conseguem responder. A apresentação dura e direta por parte dos guardas se reveste de um autoritarismo cego. Patente em sua fala, a estupidez da ação policial obediente acata a uma ordem constituída por um liame hierárquico de cujos vínculos nem mesmo os seus subordinados fazem ideia.
Agentes de um sistema que não entendem, mas a que se submete por força de uma entidade quase mítica chamada Lei, os guardas são mostrados como uma espécie de cães de caça: são fiéis não ao que compreendem, mas ao que obedecem por pura crença na bondade formal de sua obediência à Lei. Já nas primeiras páginas do livro, percebemos a crítica de Kafka ao Estado.
Pela sequência de absurdos que compõe já a primeira cena do romance, fica nítido ao leitor que o paradoxo se estabelece como motivação do procedimento narrativo básico. A ambiguidade presente na gênese formal da história, verificada no estabelecimento do paradoxo como princípio narrativo básico encaminha a articulação de dois parâmetros principais de interpretação da obra. Um fundado no viés histórico, tendo como área a degeneração do Estado de Direito, e outro cuja base se estende na crise existencial do indivíduo em busca de uma via de redenção.
? A narrativa, então, nos proporciona toda uma gama de situações que flertam com fatos surreais e aporéticos, pois Kafka nos narra tudo sem nos dar explicações. A desorientação de Josef K. diante do absurdo é o tema dominante de toda a narrativa do romance. Aqui a ambiguidade onírica do universo sui generis de Kafka, junto com as situações de absurdo existencial, chega ao limite. Limite esse muito bem colocado numa narrativa fragmentária, porque a obra toda é um fragmento.
E é nesse ponto que a ambivalência contraditória do processo de Kafka atinge seu ápice, pois é inquestionável a percepção de uma ordem, de uma organicidade, a reger esse mundo, mas daí a conseguir penetrá-la e compreendê-la, já se abre o trajeto de um necessário passo ao qual as pernas da razão vacilam. E ao contrário do que de maneira otimista podíamos ter apostado a princípio, o fim do absurdo não chega com o tropeço do pensamento em seu corpo.
A obra salienta os problemas dos mais diversos cunhos, mas não encaminha soluções. A solução ou a fórmula do que se nos apresenta como desafio (seja ele a luta pela vida em uma sociedade justa, seja a viabilidade de uma redenção do ponto de vista existencial) estão descoladas desse romance claustrofóbico de Kafka.
Para tornar mais compreensível à ambivalência contraditória presente nessa história, devemos nos atentar também ao modo da representação do cotidiano. Aqui o lar é compreendido como um verdadeiro refúgio para o protagonista perseguido pelo ambiente público reificado. É impensável para Josef K. a situação vivida em ser abordado, ainda de pijamas, em sua própria casa, por dois guardas, compartilhando seu lar com a intrusão de alguns vários funcionários do Tribunal, representando uma riqueza de pormenores a serem figurados. Aqui, Kafka põe com maestria o leitor em contato com o complexo cotidiano de Josef K., rodeado de um bom número de personagens em sua vida particular, sem, no entanto, cair na descrição exagerada e superficial dos fenômenos.
E para finalizar, comento também sobre a parábola ?Diante da Lei?, que se encontra no capítulo nono ?Na Cadetral?, onde podemos perceber mais uma vez essa ambivalente contradição narrativa kafkaniana. Essa parábola é narrada por um sacerdote a Josef K., e traz duas personagens, o camponês, que deseja entrar na lei, e o porteiro, o guardião de entrada da lei. Tanto um quanto o outro revelam sua ignorância sobre essa estrutura que vigora, mas que nada significa para eles, sobretudo, para o porteiro, que em tese deveria conhecer os significados das leis.
Conclui-se então, que a inevitabilidade supera o eventual, ao mesmo tempo em que, em uma relação dialética, o eventual se compõe a partir da própria fatalidade. Daqui nasce um aspecto formal de extrema relevância da história que é a tensão da ação que é fruto de uma interação mútua entre o inesperado e o inevitável. No desenlace da narrativa, quando a realização dos destinos concretos dos personagens kafkianos dá sentido ao enredo, todo o complexo de situações que antes possuíam uma aparência de estrutura solta, de ?fabulação acidental? e desarticulada, passa a representar, em determinada medida, uma lógica articulada, uma unidade. E por conta disso, um fim trágico.