Aldeia dos Mortos

Aldeia dos Mortos Adriana Vieira Lomar




Resenhas - A Aldeia dos Mortos


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Alexandre Kovacs / Mundo de K 05/04/2020

Adriana Vieira Lomar - Aldeia dos Mortos
Editora Patuá - 196 Páginas - Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação: Leonardo Mathias - Lançamento: 2020.

Adriana Vieira Lomar utilizou um recurso narrativo semelhante ao imaginado por Ian McEwan em seu romance de 2016, Enclausurado, no qual um feto em gestação conduz toda a trama, só que a autora neste Aldeia dos Mortos vai ainda além ao fazer com que o seu improvável protagonista – uma menina, viremos a descobrir – se desloque até o passado para conhecer e tentar influir no destino dos antepassados.

"No princípio, quando não se tem a capacidade de sonhar, talvez haja um vazio. Uma escuridão ou um clarão." Ao perceber o seu próprio corpo aumentar, da condição de uma bola gelatinosa e grudenta até uma espécie de gergelim indefinido, o feto escuta murmúrios e "desconfia" que exista alguém além dele no universo que habita. Aos poucos aprende que as "paredes do seu quarto" estão se movimentando e que existe uma mãe que está com saudades do pai, assim como um tio que acaba de ser assassinado.

"Não tenho noção do que me ronda. Não tenho noção do que seja me movimentar. Nuvens, líquidos e sólidos fazem parte do meu dia a dia. Sou solitário e somente tenho por companhia um cordão. Não enxergo tanto, só penumbras. No meio do meu corpo existe um pulsar rápido. Mesmo quando esse pulsar trota, só fico parado, sugado todos os ingredientes desse cordão-esponja. Meu corpo aumenta rapidamente. E, aos poucos, os dedos, a mão e o pé se formam. A parede do quarto onde estou fica bem longe. Quente, frio, sono excessivo, palavras soltas sem conexão. Ainda não formo frases inteiras. Picoto as palavras. Uma célula, depois a outra, uma mitocôndria, depois a outra. Uma junção de planetas originou um corpo ainda sem forma. Por algum motivo que não percebo, meu corpo cresce e ganha forma. Não falta ar por aqui. O ato de respirar é fácil." (p. 8)

Aos poucos a ação se transfere para o passado, quando o feto em uma espécie de sonho passa a conviver com os habitantes do casarão do número 89 da íngreme Ladeira dos Martírios, apresentado pela governanta Lia, a guardiã das chaves da casa. Esta é uma família com predominância de mulheres, a matriarca é a Dona Dorinha, a Vó do Caco e, dentre os poucos personagens masculinos, destacam-se o avô José, os filhos Bernardo e Arthur, o professor Sardinha, pensionista do Casarão e, não podemos esquecer, o gato Matias. Entre as oito filhas de Vó do Caco e vô José, está a futura progenitora do nosso feto-protagonista.

"Não tenho coragem de contar a Lia que estou ali para tentar salvar o meu tio Arthur. Voltar ao tempo para que, ao nascer, eu o conheça. Meu propósito sempre foi esse, e me supreendi – pois, além do meu tio, encontrei uma família extensa. Lia também não se preocupa em saber. O destino não deve jamais ser desvendado. sofrer por antecipação significa sofrer duas vezes, com a angústia da total incapacidade para mudar o que já está traçado. A linha da vida pode ser lida por quem entende do assunto, mas quem tem poderes mágicos, como é o meu caso, pode perfeitamente tentar mudar o curso da história." (p. 95)

Enquanto o inusitado(a) protagonista, que ainda não tem nome, presencia em detalhes os acontecimentos no casarão da família, ao longo de décadas, e tenta evitar os fatos que levaram à morte do tio Arthur no presente, algo não ocorre como planejado durante a gestação e a vida da mãe passa a correr risco, uma ameaça ao seu próprio nascimento. Obviamente, a situação do narrador não nascido é completamente inverossímil mas, ao mesmo tempo, muito oportuna para que a autora possa explorar o comportamento de seus personagens com tudo aquilo que é próprio da nossa frágil condição humana e para isso também serve a literatura, sempre.

Sobre a autora: Adriana Vieira Lomar é integrante dos grupos literários "Os Quinze" e “Caneta, Lente e Pincel”. Pós graduada em Arte, Pensamento e Literatura Contemporânea e Roteiro para TV, cinema e Novas Mídias pela PUC-RIO, publicou Carpintaria de sonhos, livro de poemas prefaciado por Ivo Barroso e em coautoria Contágios (Editora Oito e Meio), Ninhos (Editora Patuá) e Madre Terra - edição bilíngue Italiano e Português (Editora Acima Mandala). Tem alguns contos publicados em revistas literárias, quatro deles pela revista Subversa - “Bolos de laranja e chocolate, “A Prova”, “Saudades do meu Caubói" e "Uivos”.
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Carol 24/04/2020

E se fosse possível voltar no tempo e mudar a história da nossa própria família? Em seu novo livro, Adriana Vieira Lomar utiliza uma narradora bastante inusitada para explorar esse desejo e, quem sabe, essa possibilidade.

A história de Aldeia dos Mortos é contada por um feto, que recebe notícias muito ruins através dos sentidos de sua mãe e decide que quer alterar os acontecimentos. Então passa a ter sonhos muito estranhos que a levam de volta a um tempo onde ela não poderia existir, onde ela passa a observar toda a trajetória de sua família que culminaria no presente.

Com uma atmosfera sombria e trágica, o romance se desenvolve alternando passado e presente, envolvendo as personagens em acontecimentos maiores do que elas próprias, questionando a possibilidade de alterar o destino.

Menção honrosa ao gato Matias, modelo da capa e escudeiro fiel de vó do Caco, desmistificando a imagem dos gatos como vilões que vemos por aí.

Leia a resenha completa no blog.

site: http://papoliterario.com.br/2020/04/24/resenha-aldeia-dos-mortos/
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Carla Brandão 04/05/2020

Existem muitas formas de se contar uma história. A de Aldeia dos mortos é contada de dentro do útero, por um feto. Sem sexo definido e sem nome, o inusitado narrador divide com o leitor as impressões e percepções que tem do mundo externo. Tudo o que sabe chega até ele/a através de vozes, sons, cheiros e das mudanças percebidas no organismo da mãe. Suas descrições são fragmentadas, incompletas, dado que seu acesso às informações é limitado. Dessa forma, o leitor só sabe o que ele/a sabe, sentindo-se também dentro de seu "quartinho".

O feto consegue distinguir as vozes das irmãs, o cheiro do pai e os carinhos da mãe. Tem notícias do que acontece na família e imagina como vai ser quando efetivamente fizer parte dela. Tudo ia bem, seu corpo se desenvolvia, o espaço ficava cada vez menor e cada vez mais próximo estava o dia de seu nascimento. Mas algo acontece... O feto ouve sua mãe, com tristeza, relatar a perda de alguém muito querido. E toma uma decisão: tentará desfazer tal acontecimento.

Através do que chama de sonhos, o pequenino narrador é transportado para o passado, bem antes de sua concepção, para a aldeia que dá nome ao livro. Guiado/a por Lia, a governanta, chega até o casarão de seus antepassados. Durante alguns anos, presencia acontecimentos importantes na vida das pessoas que ainda não conheceu e das que jamais conhecerá e aguarda o momento certo para intervir e tentar evitar o sofrimento futuro da mãe. Lá, ao contrário do que acontecia no útero, ele/a tudo vê, e as descrições passam a ser muito ricas em detalhes. A autora foi capaz de criar cenários facilmente imagináveis por quem lê.

No mundo dos sonhos, tudo tem um ar meio sombrio. A matriarca da família, Dona Dorinha - ou vó do Caco -, vê as filhas crescerem e netos nascerem, mas também presencia tragédias e tem perdas irreparáveis. Cada vez mais reclusa em seu porão, cola cacos de objetos quebrados. Uma tentativa, talvez, de reconstruir ou ressignificar o que foi perdido. A metáfora é triste, mas sensivelmente construída.

O pano de fundo da trama é a Ditadura Militar. Embora o período histórico não seja explorado abertamente, a ele são feitas muitas referências. Muito é dito sem que se precise dizer explicitamente. Além disso, o cenário político é determinante para grande parte dos acontecimentos.

Intercalando passado e presente, a narrativa torna possível perceber a repetição de certas situações de uma geração para outra, levando-nos a conclusão de que somos constituídos por muito mais do que sabemos.

Aldeia dos mortos é um livro que se desvela aos poucos. Do início meio confuso, porque é nesse estado de confusão que o narrador se encontra a princípio, caminha para esclarecimentos e termina fazendo todo o sentido.

site: https://blog-entre-aspas.blogspot.com/2020/05/resenha-aldeia-dos-mortos-adriana.html
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MãeLiteratura 26/05/2020

Livro lindo!
Que livro bom! Favoritado! @adri_ana_vieiralomar tem uma escrita linda e poética e constrói um universo cheio de intensidade e cores rústicas, nesta trama tão original e visceral.
O narrador é um feto, que volta ao passado da sua família, uma família matriarcal, de mulheres fortes, para acompanhar os desfechos e vislumbrar os porquês dos dramas familiares.
O feto é o ponto central de um universo rico. Uma criança que antes de vir ao mundo, tem a oportunidade de não só conhecer sua família, como o desejo de tentar mudar o passado, protegendo o futuro.
A prosa da Adriana é singular e bonita. Este é um livro sensorial e isso me agradou muito, acho que foi um dos pontos altos da leitura. As cores, os sons, o enquadramento das cenas, a luz da paisagem, os aromas e cheiros dos doces, dos pratos preparados, me deixaram deliciada e encantada. Um livro para ser lido e saboreado com todos os sentidos.
Nesta trama temos personagens fortes, vibrantes, misteriosos e peculiares. A mãe é uma figura de proteção e o pai, aparece pontualmente na trama. É uma família de mulheres fortes e sólidas. A matriarca é Dona Dorinha, a Vó do Caco, que tudo observa, que controla, que faz comidas e doces maravilhosos.
O livro tem ternura, tristeza, amor, vigor, ancestralidade e descendência. Eu amei o universo que a autora construiu onde não fica exatamente claro o que é sonho, o que é realidade, pois o ambiente onírico permeia toda a trama. É uma história para ser sentida, mais do que raciocinada.
Minha vontade foi devorar o livro, mas me peguei lendo num ritmo mais lento, degustando a leitura. Me surpreendi com a trama, voltei várias vezes em alguns capítulos e no final, abracei o livro com muito carinho. Talentosa, esta Adriana, muito talentosa! Recomendo fortemente este livro.
Recebi este livro lindo em parceria com a @oasyscultural. O post completo você encontra no BLOG Maeliteratura.com.

site: https://www.maeliteratura.com/2020/05/resenha-aldeia-dos-mortos-adriana-viera.html
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Minho - @shootinggbooks 23/10/2020

Você como leitor, com certeza já leu muitas histórias contadas por diversos pontos de vista. Em Aldeia dos Mortos, o que me surpreendeu foi justamente essa característica. Nesse livro, acompanharemos a história pelo ponto de vista de um feto, ainda dentro de sua mãe.

É uma narrativa muito sensorial, mas que conseguimos captar tudo ao seu redor. Nosso narrador, que ainda não possui um sexo definido, nos apresenta o mundo através das suas percepções e sensações, passadas pela sua mãe.

O que eu mais gostei, foi como o seu raciocínio era claro, onde o pequeno narrador sempre quis se mostrar como uma ajuda para o mundo lá fora. É de partir o coração as suas tentativas de ajudar sua família nos momentos difíceis, e compartilhar os momentos mais alegres.

Além disso, os seus sonhos nos contam uma outra história, onde ele viaja para o passado, dessa vez, observando tudo a sua volta, e como os que criaram o início de sua família foram importantes para esse momento.

Eu fui levado pela primeira impressão que tive desse livro, pois pelo título, nós imaginamos uma história mais sombria, e mesmo que essa história tenha suas tênues mais obscuras, a história não se trata de uma trama sombria.

A criação dos personagens foi muito bem feita, junto com sua narrativa fluida, deixou a história muito mais envolvente, o que gostei bastante. Esse foi o meu primeiro contato com a autora, e espero futuramente conhecer outros de seus trabalhos.
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Krishnamurti 07/01/2021

Aldeia dos mortos de Adriana Vieira Lomar
Uma grata surpresa descobrirmos obras que comportem considerações prévias antes de adentrarmos propriamente em suas páginas para análise de seus objetivos e meios. Quer a afirmativa anterior explicitar que, um texto em tais condições, propicia adicionais reflexões que não só desenvolvem ainda mais a mensagem textual, como provocam a ampliação do universo discursivo de seus autores. Isto a nosso ver, contribui para a consecução de um dos maiores e mais nobres objetivos finais da Literatura. Provocar o pensamento reflexivo.

Quando encontramos então, uma obra que escapa aos padrões usuais de ficcionalização, melhor ainda, pois além de demonstrar a força criativa de determinado autor, faz-nos lembrar de Humberto Eco em “Seis passeios pelo bosque da ficção”: “Se os mundos ficcionais são tão pequenos e ilusoriamente confortáveis, por que não criar mundos ficcionais tão complexos, contraditórios e provocantes quanto o mundo real?”.

Ao abrir as páginas de um romance, o leitor firma com o texto literário um contrato de consideração do ficcional, a fim de encontrar as verdades organizadas no cerne da obra pois sabe que se trata de uma dada visão de mundo. É então que se estabelece o acordo tácito entre obra e leitor, com a mediação do autor – por meio da linguagem –, no trabalho contínuo de construção ficcional na porosidade com o real, ora na sua ampliação, ora no seu desvelamento. A transgressão da realidade que é o texto ficcional, cria uma sensibilidade do “estar no mundo”, por meio do universo construído: sem, contudo, negligenciar a realidade da qual parte o texto literário.

Desta condição reflexiva, é que o livro se torna uma verdade em si que – não sendo absoluta – incide na percepção do leitor para além das páginas. São esses toques e trocas entre ficção e realidade, de fulcral importância para assinalar o encontro entre leitor e obra que, claro, parte do mundo tal qual vemos para construir um “admirável mundo novo”, em linguagem, sem adentrar, todavia, naquilo que poderia se compreender apenas como imitação do real. Dá-se o encanto porque a obra literária é um mundo em que cabe o que está neste, o que não se compreende ou se teme compreender, ou o que ainda não se disse sobre este.

Um admirável mundo novo se descortina ao leitor do romance “Aldeia dos mortos” da senhora Adriana Vieira Lomar, que nos apresenta um narrador em um estágio evolutivo que conhecemos como feto humano! Positivamente uma obra complexa e permeada de provocações. Provocações muito, muito oportunas neste momento que vivemos. Partindo da premissa de que o feto tem consciência de si e dos outros - o que implica a preexistência da alma ou do espírito, como queiram -, que há vínculos indissolúveis entre ele e sua ancestralidade via experiências pretéritas, e de que a memória lhe está parcialmente obliterada, mas ainda assim, sente e pensa ainda que em graus variados de nitidez que vão se afinando ao longo do tempo em que se abriga no refúgio do útero materno, a autora abala consciências, certezas e crenças. Subverte de partida a condição do pensamento materialista, e segue demolindo noções cartesianas de tempo e espaço sem, no entanto, impor verdades. Sugere-as de tal modo e com uma habilidade narrativa que encanta o leitor, planta sementes de outras possibilidades de consciência quanto à questão da existência humana.

O feto à princípio vai tomando consciência de si e começa a perceber cada vez com mais nitidez a ambiência onde está, e na qual se desenvolve materialmente. Sente cheiros e os toques carinhosos da mãe, até que um belo dia “um peso abala a estrutura” de onde está, porque sente os efeitos do sofrimento da mãe quando esta diz que o irmão dela foi assassinado.

Compreensível que aquele ser fique boa parte do tempo, "inconsciente", porque o órgão de manifestação dessa consciência - o cérebro - está em processo de formação e, em assim sendo, dorme em pesada letargia, mas sonha, e nesses momentos, toda uma história paralela se desenvolve porque consegue aos poucos reaver recordações do passado e sua mente vai paulatinamente provendo-se de conceitos e pensamentos acerca de si. E quem poderá provar por A mais B que assim não é de fato na vida humana? Conseguimos que um astronauta russo chegasse ao espaço em 12/04/1961 (como está referenciado no livro), e no entanto, o homem permanece interiormente esse desconhecido.

Com a ajuda de uma misteriosa mulher que vê sentada “no banco de algum lugar”, o feto em sonho, retoma a herança de si mesmo, mas já dentro da estrutura psicológica em que se encontra, reavendo o patrimônio das realizações e das dúvidas que acumulou, a se lhe regravarem no ser, em forma de tendências inatas, e passa a reencontrar as pessoas e as circunstâncias, as simpatias e as aversões, as vantagens e as dificuldades, com as quais se acha afinizado. Ou por outra, simplesmente acompanha a história de seus antepassados. História essa que a criatividade da autora moldou dentro de datas simbólicas que oscilam entre 13/10/1968 – Data em que falece o poeta Manoel Bandeira, e 16/12/1976 quando ocorre uma chacina na Lapa em São Paulo. Temos aí a ancoragem no real que nos situa bem em cheio na época que passou à história brasileira como a época nebulosa da ditadura militar no Brasil. E toda essa circunstância está de alguma forma ligada ao assassinato de seu tio. Este fato norteará as suas preocupações de descobrir como aconteceu e, veja-se o nível de consciência, se poderia fazer algo para evitar aquele acontecimento nefasto.

De forma que a “Aldeia dos mortos” passa a existir em última instância, não no casarão de número 89 no alto da íngreme ladeira dos martírios. É em verdade, uma grande metáfora de nosso país e do nefasto período de uma sociedade enfraquecida na base, pela falta de sólidos fundamentos morais, de que é exemplo gritante o capítulo “o casamento de tio Arthur” (p. 130) que desvela a tônica social, permeada de jogos de interesses e de relações de poder no tempo em que se viveu a ditadura militar. Vejamos porquê. Entenda-se que há um recuo no tempo em que o feto presencia esses acontecimentos. Tio Arthur, irmão de sua mãe vai casar. Lia a governanta do casarão “prepara suco de maracujá para Bernadete: Bastante açúcar e meio litro do frasco de suco de maracujá com alface. Ela adormece com cara de anjo e a festa prossegue.” Anote-se que Bernadete é filha de uma empregada doméstica, uma deserdada da sorte sem pai, sem mãe, que foi afinal adotada por Vó do Caco” – a matriarca da família. E Bernadete é o que popularmente conhecemos como ‘chave de cadeia”, um ser completamente desajustado e revoltado que precisa de controle a todo custo. Resultado? Tome-lhe suco de maracujá goela abaixo. Mais adiante encontramos “na mesa principal, Vó do Caco com as tias endinheiradas com seus maridos e filhos”. Mais adiante; “hoje é um dia memorável. Eles dançam. O ritmo de suas pernas se contrapõe ao que ocorre fora daqui. Os militares marcham com pés rígidos e opressores.” Lemos na sequência lembranças de uma das convivas, conversando com uma de suas irmãs sobre o pai:

“- Ele falava de tudo. Lembra quando você se apaixonou e o que ele disse?
- Que eu ficaria molhada. Agora vê, ela nunca falou de sexo conosco. E ele achava a coisa mais natural do mundo. Naquela época, e até hoje em dia, isso seria um espanto.”

E finalmente, o capítulo se encerra com: “Muda, Vó do Caco fica na querência; não insiste. Quem sabe Padre Nelson não consegue convencê-la, pensa. Já já ele chega. A esta altura, está proferindo o sermão.”

Temos aí o quadro perfeito de nossa sociedade de então. Os deserdados da ‘sorte’ amansados na base de suquinho de maracujá para que a festa dos ricos seja possível, estes, indiferentes a curtir suas vidas mesquinhas, sexualidade desorientada, pés rígidos e opressores a marchar e finalmente, o sermão da igreja! Que beleza! Tudo em apenas 4 páginas de um capítulo!

Cabem mais algumas observações finais a essa obra de desfecho surpreendente. A porosidade que a autora estabelece entre a ficção e a realidade, deve ser observada do ponto de vista contextual e flexível, de modo a construir um maior refinamento de nossa percepção tanto no que diz respeito à história da sociedade como um todo, quanto às questões existenciais do feto que afinal sabemos tratar-se de uma mulher.

Esta circunstância não exclui a capacidade de contemplação crítica da obra porque não se trata de uma ação en passant, de modo que o leitor aceite todas as colocações do texto como verdade legítima ao mundo empírico. O leitor encontrará ecos de provocações e de ampliação do nosso entorno social ainda hoje, posto que, como função possível do texto ficcional, pode-se listar a de desvelar as práticas que orientam – em linguagem – as ações humanas. Uma leitura de mundo que vai além deste, pois amplia nossa capacidade de reflexão do “estar” no mundo. A obra tem – entre tantos outros fitos, – o de construir a ampliação acerca de ‘verdades’ circunscritas nas práticas sociais referenciadas. E positivamente, é o que acontece neste belíssimo romance.

Livro: “Aldeia dos mortos” – Romance de Adriana Vieira Lomar – 1ª edição – Editora Patuá – São Paulo – SP, 2020, 196 p. - ISBN: 978-85-8297-896-2
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