Antonio Luiz 21/08/2010
Um cyberpunk (mais ou menos) brasileiro
Recém-lançado, o "Cyber Brasiliana", de autoria de Richard Diegues, editor e fundador da mesma Tarja Editorial que o publica, revela no posfácio sua ambição: quer ser uma referência aos leitores menos acostumados ao gênero, para que saibam que nem tudo em ficção (científica, deve-se presumir) é um bicho de sete cabeças.
Conseguiu? Em parte. No fundamental, é um bom romance de ficção científica, digno de constar como uma das referências do cyberpunk nacional – ou do pós-cyber, se preferirem. Mas receio que, apesar da intenção do autor, está longe de ser uma leitura fácil para os não iniciados no subgênero e faz tropeçar mesmo os aficionados. Expliquemos.
Em termos de ritmo, linguagem, especulação tecnológica sobre programação e informática, construção da trama e desenvolvimento dos protagonistas, o livro merece sem hesitação um “muito bom” – e com isso, estamos qualificando pelo menos oitenta por cento da obra.
Com certeza, as influências estrangeiras incluem o William Gibson de "Neuromancer" e, de maneira inconfessa, mas visível, o Neal Stephenson de "Nevasca" ("Snow Crash", no original). "Cyber Brasiliana" não chega a ser tão ousado e inovador quanto foi o primeiro em seu tempo e fica algo a dever quanto a detalhes de construção do cenário, como veremos adiante, mas é comparável em senso de ritmo e de fantástico e, para o leitor de hoje, tem a vantagem de estar mais atualizado quanto à concepção de redes de informação, realidades virtuais e programação. Em relação ao segundo (best-seller nos EUA dos anos 90), ganha muitos pontos por não se perder em lições minuciosas e intermináveis sobre teorias absurdas e se mostra superior também na verossimilhança dos diálogos e dos personagens.
É muito comum na ficção científica, mais ainda no cyberpunk, o uso e abuso de personagens planos: caricaturas, heróis de ação, tipos sociais estereotipados, meras ferramentas para fazer avançar a história. Mas o romance de Diegues consegue desenvolver uma ação intensa e frequentemente violenta (ainda que em grande parte virtual) e uma especulação interessante, sem deixar de explorar reflexões e sentimentos pessoais e criar protagonistas críveis e humanos, com vida própria. Pena que não se possa dizer o mesmo dos antagonistas, estereotipados como vilões ávidos por poder absoluto.
Deve-se ressalvar também que algumas informações cruciais sobre os protagonistas são insuficientemente explicadas ou justificadas. Por exemplo: um deles, apresentado como um programador nerd que nunca fez outra coisa na vida, no momento crítico se revela um obstetra competente, que sabe exatamente como fazer para salvar a mãe e a criança de um parto muito complicado, inclusive que medicamentos aplicar e em que dosagem.
Nesta obra, diferentemente de muitas outras do gênero, a concepção da realidade virtual e de seus habitantes é consistente e embasada em um real conhecimento de ciência da computação. Mas é aqui que a porca torce o rabo. Este resenhista é usuário regular, se não intensivo, de computadores há mais de um quarto de século, aprendeu um pouco de programação no início da vida profissional e não se considera analfabeto no tema (mesmo se isso foi lá pelo Jurássico, quando se programava em Fortran com cartões perfurados por dentes de dinossauro, ou no Paleolítico, quando se rascunhava linhas de código APL em couro de mamute). Mas confessa que derrapou com frequência nas explicações e no jargão técnico, o que é bastante incômodo quando se trata de passagens críticas para o entendimento dos planos dos personagens e até de cenas de ação. E receia que leitores mais leigos simplesmente empaquem. Como neste trecho absolutamente crucial da página 42:
– E se não fossem informações armazenadas com as várias centenas de terabytes, mas sim um paradigma de algorítmico neural de reconhecimento de padrões, instanciado de forma a processar o cruzamento de dados por reconhecimento de suas respostas possíveis, não por sua armazenagem? Quanto espaço físico seria necessário para armazenar um trecho de código capaz de realizar isso? Quase nada! E não seria detectável, pois no lugar de uma tonelada de dados, teríamos apenas um grande volume de processamento, o que hoje é totalmente comum. Seria encarado pelo Hipermundo apenas como um avatar, recebendo uma carga de informações a partir de uma mente humana plugada, exatamente como você.
Acredite o leigo, não é tecnobaboseira à maneira de “Jornada nas Estrelas”: faz sentido. Mas mesmo quem já soube um pouco do riscado precisa ler várias vezes antes de começar a entender o suficiente para passar adiante – e é parte de um diálogo dinâmico, num momento de tensão e suspense. É verdade que esse conceito em particular é tão rebuscado que o autor volta a explicá-lo no posfácio: “para desenvolvermos um real sentido de inteligência artificial seria necessário partirmos do cruzamento de reações dentro de um conjunto finito de dados entrecruzados, fugindo dos conceitos, mantidos na época, que envolviam a armazenagem relacional de informações. Em minha visão, a única forma consistente de criação de uma IA seria a criação de um algoritmo com base matemática, em que o volume de dados seria reflexo apenas da lógica, não dos dados contidos, evitando assim a armazenagem de referências para o cruzamento organizacional em forma de pergunta/resposta, a qual necessita de uma armazenagem ampla”. Evidente! Agora tudo ficou claro, não é? Bazinga!
O enredo funciona mesmo que trechos como esse sejam entendidos pela metade. Mas uma das características da ficção científica costuma ser apresentar ideias técnicas e científicas de forma acessível e intuitiva e para isso esta obra não encontrou a fórmula mais adequada. Receio que o leitor com horror a Guimarães Rosa e James Joyce e que busca um entretenimento em linguagem ágil e simples vai desistir e procurar o conforto de um texto mais fácil – como, digamos, o de Machado de Assis. E até leitores mais acostumados com ficção científica vão ficar com a sensação de que seus algoritmos neurais de reconhecimento de texto foram parcialmente deletados.
Por outro lado, a sofisticação da especulação tecnológica no campo do software contrasta com ingenuidade nas concepções econômicas e políticas.
Assim como "Guerra Justa" de Carlos Orsi – outro cyberpunk brasileiro recente – "Cyber Brasiliana" afasta-se da concepção original e anglo-saxônica do gênero, de um futuro decadente de anarquia capitalista ou de Estados frágeis dominados por transnacionais privadas. No livro de Orsi, o poder seria de uma igreja mundial totalitária. Neste de Diegues, é de grandes Estados de tipo tradicional, mas não os que conhecemos hoje: as três grandes potências globais são a República Brasiliana, a Africanísia e a Euronova (esta na Austrália), todas nações ricas e prósperas, enquanto o hemisfério norte está decadente e politicamente fragmentado.
Tudo isso é plausível e aceitável. O autor não precisaria realmente explicar como esse cenário geopolitico viria a ser. Isso aconteceria daqui a mais de cem anos, tempo suficiente para reviravoltas tão surpreendentes quanto se queira. Mas tenta fazê-lo, e aí se atrapalha, embora diga ter se baseado em pesquisa “realizada com o apoio de grandes conhecedores de Economia, Sociologia e História”. Infelizmente, deve ter ouvido as pessoas erradas.
A República Brasiliana anexou a Bolívia e a Argentina destruídas por guerras: com quem? Comprou o México, Uruguai e Cuba: de quem? O mais comprometedor é a descrição (capítulo 12) de como uma crise de embargos de carne bovina levou a uma guerra mundial por bois no pasto que, por sua vez, resultou no colapso das potências tradicionais e na ascensão do Sul. Entre outros lances esdrúxulos, os chineses, famintos por carne bovina, invadem a Índia para se apoderar de suas vacas sagradas. Teria graça numa ficção científica humorística à Douglas Adams, mas não é o caso.
Essa elucubração de meia dúzia de páginas poderia ser riscada com proveito: é irrelevante para o enredo e só prejudica sua credibilidade. Além de diluir em contra-sensos o impacto da ironia bem achada que dá início à digressão: um protagonista se surpreende ao encontrar gado no mundo virtual e lhe explicam que se trata de avatares de bois e vacas reais que, confinados em cubículos e alimentados com ração, vivem conectados a bucólicos pastos virtuais para se manterem tranquilos. Uma Matrix bovina.
Numa especulação mais consistente do ponto de vista político, seria também de se questionar se faria sentido existir uma só moeda, um só banco central, um só banco de dados global centralizado e um só Hipermundo (uma espécie de "Second Life" vitaminado, mas não tanto quanto seria de esperar de uma tecnologia do século 22). Faria sentido numa utopia pacífica ou numa ditadura global, mas num mundo de potências rivais? Mas o foco não é especulação política séria e a necessidade dramática justifica a licença poética: convém que os vilões tenham como assumir o controle do mundo de um só golpe.
Outro paradoxo é que, apesar do título, o romance diz pouco do Brasil. A maior parte da ação real se dá nos Estados Unidos (nesse futuro, desunidos) e no México e a cultura especificamente brasileira não desempenha nele nenhum papel importante. Curiosamente, o Brasil supostamente domina a América Latina, mas a maioria dos termos técnicos militares e de programação são castelhanos. É como se o romance, apesar de escrito por um brasileiro e ter como antagonistas um cartel de líderes e empresários norte-americanos e europeus que tentam tomar o poder mundial para si, visse o Sul dominante do século 22 através dos estereótipos do Norte do século 20 ou início do 21.
Não só o México do romance faz pensar em um cenário montado em estúdio de Hollywood, como o nosso próprio país, a ponto de contrariar as próprias premissas do romance. Um personagem é (entre outras coisas) guia de turistas na ilha do Cardoso, litoral de São Paulo. Pois fica de olho em um casal de bermudas e mocassins sem meias, “provavelmente gringos pela cor da pele rosada. Era de onde vinham as boas gorjetas”. Ora, mas não é a República Brasiliana que, nesse cenário, é a grande potência econômica, ante um hemisfério norte decadente e empobrecido?
A física também está longe de ter sido tão bem trabalhada e embasada quanto a programação. Em vez de especulações complicadas mas coerentes, temos neste aspecto fantasias apressadas. Literalmente: entre elas contam-se motocicletas que contornam caminhões e pedestres a 1.600 quilômetros por hora. Nada contra a fantasia em si, mas seria o caso de explicar como se lida com forças-G proporcionais ao quadrado da velocidade. Ou as estradas teriam de ser absolutamente retas e sem obstáculos, ou os motociclistas perderiam a consciência na primeira manobra. Para não falar do pobre coitado na garupa.
No campo do hardware, pode-se encontrar até mesmo tecnobaboseira legítima, para Spock nenhum botar defeito – felizmente, poucas vezes. Como neste exemplo da página 231: “a energia nuclear das baterias era conduzida por uma centena de microdutos periféricos, que movimentavam os elétrons e faziam a conversão da energia dentro de um compartimento das baterias, retornando por um tubo central até o servidor acoplado”. Se o leitor não entendeu, está de parabéns: desta vez, realmente não tem nexo.
Todas essas ressalvas não devem fazer perder de vista que o romance é na maior parte bom, como especulação e como entretenimento. Se fosse podado de alguns excessos, incoerências e elucubrações desnecessárias, ficaria melhor. Se também descobrisse como não abusar do jargão e encontrar a linguagem certa para transmitir ao leitor leigo suas especulações sobre o futuro dos universos virtuais, seria o grande marco do cyberpunk brasileiro. Este resenhista não se candidata a ensinar o padre-nosso ao vigário, mas a façanha não deve ser impossível se um Richard Dawkins consegue explicar questões de ponta em biologia ao leigo e Stephen Hawking faz o mesmo em física quântica e relativística, com relativa simplicidade.
Faltou também uma revisão mais cuidadosa. A maior parte da prosa é fluida e inteligente, o autor sabe usar um vocabulário rico e complexo e fugir dos clichês e do excesso de adjetivos, mas sobraram algumas frases desajeitadas e alguns erros ortográficos (o mais comum é trocar “há” ou “à” por “a”). Por fim, alguém devia ensinar o autor, ou ao menos a seu personagem, a preparar corretamente uma "michelada" mexicana. Vale a pena.