Brunífero 02/05/2022
Bomba de lembranças
Por mais que minha condição de (possível-futuro) pesquisador agradeça o distanciamento que eu tenho, sempre tive o fascínio de estar em uma posição de nostalgia. Como seria ter vivido um período X, um fenômeno Y são perguntas que me faço mais pela sensação de se ter múltiplas vidas do que propriamente o desejo por nostalgia ou mesmo por achar que o passado era melhor - aliás, se tem uma coisa que eu abomino é o saque da expressão "bons velhos tempos" e correlatas. Por isso, olhei com muito interesse a empreitada jornalística de Manoel de Souza e Maurício Muniz que resultaria no livro O Império dos Gibis.
Viabilizada por financiamento coletivo, o livro reconstrói a história editorial dos quadrinhos do grupo Abril, que começa desde antes de sua fundação oficial (em 1950) até o encerramento dos Quadrinhos Disney, em 2018 - coincidentemente, pouco tempo depois do começo da escrita deste livro. Portanto, toda a história dos quadrinhos da Abril está coberta nesse livro, e sendo essa uma das mais longevas e significativas presenças do mercado editorial brasileiro, O Império dos Gibis já ganha, logo de cara, uma importância documental tremenda. Os autores, que já tinham experiência prévia (tanto pessoal quanto profissional) no mundo dos quadrinhos, são amparados principalmente por entrevistas com pessoas chave da editora Abril e do selo Abril Jovem (1989-97), como editores, publicitários, profissionais free-lancers, artistas, além dos profissionais dos Estúdios responsáveis pelos quadrinhos Disney e a Maurício de Sousa Produções, além da ajuda de algum estudiosos, aliado a pesquisas em jornais, trabalhos acadêmicos, tabelas de vendas, etc. É um trabalho de fôlego, comunicado por uma escrita tipicamente jornalística: rápida, objetiva e sem rodeios, ainda que com alguns toques literários, que adornam o livro de certa beleza e curiosidade quase infantis. São abordados, por exemplo, o método de impressão das revistas em quadrinhos nos anos 70, com direito até a causos, como quando as gráficas da Abril que imprimiam as revistas do Cebolinha foram paralisadas às pressas quando, durante a revisão de provas da revista, descobriu-se que um colorista da MSP tinha adicionado uma protuberância no Cebolinha em uma cena de banho. É o tipo de estória que está lá para dar personalidade, um rosto aos fatos frios.
Fato é que o livro é dinâmico e sério na mesma medida, e eu achei essa combinação bem legal por parte dos autores. No entanto, sei que, por projeto ou não, o livro acabou muito mirado por colecionadores e por compradores da época. Meu pai mesmo, que leu os gibis da Marvel já pela Abril no fim de sua adolescência, ficou encantado pela proposta do livro. Claro, a nostalgia ataca, ainda que os autores sabiamente não a tornem o foco principal da coisa - eu mesmo, que não peguei essa época, consegui aproveitar bastante o livro do mesmo jeito. Ainda assim, o livro não deixa de evocar o passado das publicações pelas entrelinhas, com o duplo intuito da homenagem-desmistificação. Homenagem quando detalha o processo de letreiramento em uma época anterior ao computador, mas também desmistificação quando relata os casos de censura dos quadrinhos quando estes eram "adultos", em contraposição à ideia do mercado brasileiro e da própria Abril de que quadrinho é algo "infantil". Esse é só um exemplo de vários de um delicado, mas bem-sucedido equilíbrio. Sinto que os autores são bem justos quanto á importância da Editora Abril na história do mercado editorial de quadrinhos aqui no Brasil.
Para mim, porém, a marca que fica é a de uma porta para uma arte perdida. Hoje em dia, os quadrinhos são para (e lido por) poucos, por uma série de razões a qual Manoel e Maurício abordam, visto que essas razões foram, aliadas a erros estratégicos, fatais para o domínio da Abril nos quadrinhos. É um processo histórico, tão complexo quanto delinear a queda da Nova Hollywood e o qual não cabem chavões geracionais ou lamentações superficiais, o que nem por isso deixa de ser lamentável. No fim das contas, os quadrinhos europeus sempre foram de nicho e os americanos, especialmente os de super-heróis (e não só no Brasil) acabaram por ficar restritos a barreiras etárias. Essencialmente, qualquer pessoa com menos de 35 anos tem muito menos chance de se afeiçoar aos bastidores da editora Abril. Faço por interesse de pesquisa, que não vale só para o livro, mas também para os sentimentos que parece despertar. Por que, afinal de contas, o que significa a nostalgia? Normalmente, é um sentimento que diz mais sobre a pessoa do que sobre o objeto o qual se sente nostálgica, mas nesse caso, existiram méritos em se pegar uma época assim.
A Abril, mesmo já tendo passado, teve enorme influência na chegada dessa sempre estranha arte de se desenhar quadros em papéis em uma leitura simultânea. Sem contar que, para uma editora de tão grande porte e com tanta demanda, a sua variedade e seriedade nas publicações é algo poucas vezes visto no mercado. Para cada grupo de revistinhas de super heróis, havia um Watchmen, um Blood, algo que fazia o gosto do consumidor avançar. De certa maneira, dá pra considerar que, conforme o leitor de quadrinhos crescia, a Abril crescia junto com ele. Um hipotético leitor nascido no fim dos anos 60 cresceria com Turma da Mônica e as revistas da Disney; mais tarde, na pré-adolescência e na adolescência propriamente dita, as revistas de super herói davam para o gasto, e já na fase adulta, coisas como o selo Vertigo estariam esperando por ele. Não somente as tiragens são inimagináveis para os dias de hoje; também o são o tamanho da empreitada e a circulação das revistas. O prestígio cultural dos quadrinhos no Ocidente, ganho especialmente no fim dos anos 80, não colaborou para a renovação do público, mas isso não deveria ser tão surpreendente assim - quando se entende que uma arte é valiosa, se cria meios para evitar sua massificação, e já que vivemos em uma realidade capitalista, parte disso significa elitizar o público. Essa certamente não é a única razão para a perda de protagonismo cultural dos quadrinhos (a emergência da televisão e dos videogames e, convenhamos, a cronologia da Marvel e da DC não ajudaram em nada), mas acredito ser uma das razões principais. Mas ainda deixou uma marca, uma que consigo compreender.
Como alguém que leu esse livro pela curiosidade e com um interesse de pesquisa, gostaria de ter falado mais sobre aspectos mais técnicos. No entanto, a dimensão da nostalgia alheia foi bem difícil de evitar na minha avaliação. Para a maioria das pessoas que lerão esse livro, esse livro é mais uma celebração do que propriamente uma investigação, então talvez o choque de descobrir a censura de um beijo lésbico (como foi o caso da edição da Abril de Camelot 3000) possa não ser tão grande. Nem tanto por uma questão de preconceito direto; eram outros tempos, e esse pressuposto autoriza a uma leveza ao qual não se permite na vida adulta. Além do quê, ao final da leitura, notei que estava um pouquinho mais envolvido para além das palavras de "isso é um bom livro". Agora que eu conheço um pouquinho dessa história, e porque é interessante, é como se parte dela fosse minha também. Porém, não como uma viagem ao passado infantil, mas como a trajetória de uma arte. É uma ressignificação, uma das grandes alegrias da existência, e não puramente da história. Por que, se você continua em frente lidando com o mais imediato que existe, não é interessante descobrir e redescobrir algo que o valha?
*Obra de edição única, da Editora Heroica, dos mesmos autores (praticamente uma autopublicação). Além do texto em si, o livro é acrescido de um epílogo, agradecimentos pessoais, agradecimentos dos apoiadores mais proeminentes do financiamento coletivo (além da listagem de cada apoiador individual), lista de fontes, depoimentos (diretos e coletados) reportagens e bibliografia, galeria de fotos, número total de títulos lançados pela Abril e listagem de cada um deles aliado ao número de vendas (!!!), além de prêmios recebidos e os créditos para os profissionais que trabalharam nos quadrinhos lançados pela Abril.