Leila de Carvalho e Gonçalves 17/04/2022
?À Noite, Todos Os Sangues São Negros?
Durante a Primeira Guerra, a França recrutou aproximadamente 200.000 soldados de suas colônias, uma parte sob ameaça de perder suas terras e a outra iludida pela promessa de uma boa pensão e a cidadania francesa.
Em Irmão de Alma, vencedor do International Booker Prize, David Diopp aborda esse assunto, mediante a perspectiva dos ?chocolats?, africanos ocidentais, que tiveram suas vidas ceifadas ou alteradas, defendendo um país que jamais foi deles.
A história é narrada e protagonizada por Alfa Ndaye, um adolescente senegalês, que é convencido por Mademba Diop, seu amigo e irmão de criação, a tornar-se um tirailler, isto é, um atirador de baixa patente do exército francês. Resumidamente, a narrativa expõe como os horrores da guerra podem induzir à loucura, ao apresentar o dia a dia nas trincheiras, onde uns competem contra os outros, estimulados por um capitão que menospreza as vidas até de sua tropa.
?O capitão lhes disse que os inimigos tinham medo dos negros, dos canibais, dos zulus, e eles riram. Estão felizes porque o inimigo do lado de lá tem medo deles. Estão felizes em esquecer o seu próprio medo. Assim, quando eles surgem da trincheira, o rifle na mão esquerda e o facão na mão direita, projetam-se para fora do ventre da terra e colocam no rosto olhos de loucos. O capitão lhes disse que eram grandes guerreiros?, então eles morrem enquanto cantam, competindo entre si loucamente.
Num relato de vocabulário limitado e repetitivo, característico de quem conhece muito pouco o idioma que está falando, Ndyae compartilha primeiramente sua dor e o sentimento de culpa pela morte em combate de Mademba, colocando em pauta a eutanásia ou o homicídio por compaixão. Em seguida, ele revela seu ritual de vingança contra os inimigos, algo tão hediondo a ponto do jovem ser considerado um ?dëmm?, devorador de almas, e temido pelos seus companheiros.
Como ele mesmo reflete: ?A loucura temporária permite esquecer a verdade das balas. A loucura temporária é irmã da coragem na guerra. Mas, quando damos a impressão de sermos loucos o tempo todo, continuamente, sem pausa, aí assustamos, até mesmo os nossos amigos de guerra. Aí começamos a não ser mais o irmão coragem, o enganador da morte, mas o amigo verdadeiro da morte, seu cúmplice, seu mais que irmão.?
A escalada alucinatória de Ndyae conduz a narrativa para um impactante desfecho. Irmão de Alma foi inspirado no romance A Aventura Ambígua, de Cheikh Hamidou Kane, considerado um dos primeiros e mais extraordinários romances filosóficos africanos. Ele está indisponível em português, mas há material na internet para conhecê-lo e realizar a intersecção entre as duas obras, ou seja, a similaridade das trajetórias de Samba Diallo e Mademba Diop. Um assunto que remete a aculturação dos povos originários, aspecto que determina o destino dessas personagens. Inclusive, há uma frase bastante elucidativa do livro de Kane na epígrafe de Irmão de Alma: ?Sou duas vozes simultâneas. Uma se afasta e a outra cresce.?
No limite entre a civilização e a barbárie e com apenas 123 páginas, Irmão de Alma comprova que ?tamanho não é documento?, quando a pauta é a qualidade literária. Ao mesmo tempo, tratá-lo como ficção histórica é desmerecer seu alcance como uma contundente alegoria sobre a monstruosidade da guerra.
Como afirma escritora Micheliny Verunschk: ?O que os senhores da guerra fingem não saber é que não há força alguma que a guerra possa gerar. Nem econômica, nem política, nem pessoal. A guerra é uma ruína. E o que parece força, mais cedo ou mais tarde, revela sua face de fracasso. A pulsão de morte por ela representada é poderosa, claro, mas seus frutos sempre serão podres?.
Boa leitura! ??