Flávia Menezes 06/10/2021
FRANKESTEIN: A FACE ATERRORIZANTE DA CRIANÇA QUEIXOSA.
Para ler uma obra clássica, é preciso abandonar tudo o que conhecemos da estrutura atual da literatura moderna, das técnicas de Escrita Criativa, para poder ver o mundo tal como era, através do olhar do autor.
?Frankestein? é uma novela que foi escrita há mais de dois séculos atrás, por uma jovem de apenas dezoito anos chamada Mary Shelly, que iniciou essa história após um desafio de Lord Byron de que escrevessem uma história de terror. Apesar de ter demorado mais tempo para iniciar a história do que os demais convidados, em uma noite, a figura da Criatura aterrorizou os sonhos de Mary Shelly, e se ela havia ficado tão assustada, acreditou que poderia provocar o mesmo efeito nos demais.
A obra é escrita de uma forma poética, romântica, com uma linguagem culta de uma jovem cujos pais também eram escritores, e a vida sempre girou em torno dos livros. Suas descrições da anatomia e fisiologia, ou sobre viagem marítimas e suas embarcações parecem ter vindo de uma escritora que conhecia a fundo esses temas, pois sua escrita é bastante confiante no que está sendo retratado.
Embora eu tenha dito inicialmente que devemos nos despir dos conceitos da estrutura e narrativa da modernidade, existem aqui dois pontos que eu gostaria de discutir, antes de tratar da história em si.
O primeiro ponto que, confesso, me incomodou bastante, é que a narrativa da história se altera em alguns momentos, onde ora é o viajante que deseja desbravar novos mares quem fala, ora ela é narrada pelo Dr. Victor Frankestein, e ora é narrada pela Criatura. Porém, em todos os momentos, a linguagem é a mesma, como se fossem narradas pela mesma pessoa.
Existe uma regra ensinada pelo professor Luiz Antonio de Assis Brasil, em seu livro ?Escrever Ficção? de que ?o escritor deve se tornar o personagem, mas o personagem nunca deve se tornar o escritor?. O que isso quer dizer é que o escritor pode sentir como o personagem, mas o personagem não deve ser e sentir como o escritor.
E é exatamente isso que vemos em ?Frankestein?: todos os personagens são Mary Shelly. Todos são extremamente emotivos, sensíveis, e extremamente cultos. E referente a linguagem, vem aí meu segundo ponto.
Apesar da história já ter um elemento extremamente restrito à ficção, que é o de trazer a vida uma pessoa já morta, a parte em que a escritora transfere a narrativa para a Criatura, vemos que não existe qualquer necessidade de explicações coerentes, uma vez que, ao narrar sua história, a Criatura precisou justificar como aprendeu a falar, e a forma como isso aconteceu, é muito fantasiosa.
Muito embora possa ser a fala aprendida por modelação (ou seja, observação e repetição), a Criatura jamais chegaria a um nível de erudição como seu criador, que já tinha anos de conhecimentos à sua frente. Outra justificativa sem qualquer coerência é a Criatura ter aprendido a ler através da observação da fala de interlocutores que ele acompanhava à distância. Algo totalmente impossível, pois a leitura requer o uso de símbolos (letras) que em nada se conectam unicamente com a fala.
Mas enfim, esses são apenas pontos muito incômodos que eu decidi compartilhar, mas que não tiram em nada a beleza da história.
Analisando os personagens e observando seus sentimentos expressos, suas falas e suas dores, me deparo com alguns comportamentos infantilizados tanto do médico, Dr. Victor Frankestein, quanto da Criatura.
Victor Frankestein é um homem ambicioso, que não abandonou sua ideia de que era possível trazer de volta à vida alguém que já morreu. Sem dúvida uma missão ambiciosa, e que lhe daria grande credibilidade no mundo científico. Porém, para a minha surpresa, não havia nenhum propósito em toda essa obstinação que ele nutria desde muito jovem. Ele trouxe à vida uma Criatura, e depois a descartou porque não havia nenhum propósito por trás de sua ação.
Não houve uma tentativa para entender como a Criatura se comportaria, se aprenderia a falar, do que era capaz, se era um ser racional ou não. Não houve nenhuma interação, nenhum interesse, e nenhum propósito. Então, por que ele trouxe à vida essa Criatura? Por puro capricho?
Sabe o que me lembrou? Me fez pensar em uma criança com seus dois ou três anos, com um monte de peças de montar, que começa a montar algo sem ter uma ideia exata de algo específico, e que no final tem diante de si um amontado de peças que não serve para nada e assim, frustrada, ela apenas as descarta porque não haver nenhuma função.
Um outro ponto desse médico que me chamou muita atenção, foi seu comportamento muito dramático, de uma criança queixosa, que passa a vida sofrendo e se lamentando, porque não tem maturidade o suficiente para assumir as responsabilidades pelas consequências dos seus próprios atos. Durante toda a história ele sofre, se lamenta, e adoece, ao invés de se responsabilizar e tomar uma atitude para conter a Criatura.
Referente à Criatura, existe o apelo à rejeição, ao abandono, à solidão, porém, para mim, nenhum desses aspectos encobre o fato de que ele cometeu crimes e, assim como o seu criador, não consegue assumir a responsabilidade pelos seus atos.
Assim como Victor Frankestein, a Criatura também é extremamente infantilizada, e apesar de seus sofrimentos sensibilizarem o leitor e despertarem empatia, não podemos ignorar que o fato de sofrermos por algum motivo, não nos dá nenhum direito de infringir dor na vida do outro.
A Criatura é invejosa, é vingativa, é egoísta, e comete crimes porque se acha no direito de devolver ao outro a dor que ele sente. Mas ninguém havia lhe infringido nenhuma dor física, sendo assim, como ele pode definir que o outro pode sofrer por perdas de pessoas que amam apenas para que se sintam sozinhas como ele? Quem foi que disse que tem o sofredor o direito de fazer qualquer pessoa sofrer pelas dores que ele mesmo precisa aprender como resolver?
Os personagens se abstêm de assumir suas responsabilidades, responsabilizando outros, quando deveriam ser eles a tomar a rédea de sua própria vida. Me lembrou aqueles adolescentes que se recusam a crescer, e vivem responsabilizando os pais pelos seus sofrimentos, ao invés de assumir sua vida e aprender a lidar com as suas dores. Entende o que eu quero dizer? Parecem aqueles jovens que adoram dizer aos pais: ?eu não pedi para nascer?. Mas nasceu, e agora a sua vida é responsabilidade sua.
Assim são Victor Frankestein e sua Criatura: uma relação simbiótica, em que, por mais que ambos fossem tão cultos, não houve qualquer eficácia na comunicação porque ambos eram crianças incompreendidas, que não ouviam, mas apenas queriam ser ouvidas. E quando não existe um limite de onde o espaço do outro começa e o meu termina, a comunicação se perde, os vínculos dos relacionamentos não se estabelecem, e o que resta é dor, incompreensão, culpa, remorso e muita, mais muita imaturidade e irresponsabilidade.