Tocaia do norte

Tocaia do norte Sandra Godinho




Resenhas - Tocaia do norte


4 encontrados | exibindo 1 a 4


Leila de Carvalho e Gonçalves 01/03/2021

Tragédia Anunciada
Vencedor do Prêmio Manaus de Literatura, como melhor romance nacional de 2020, Tocaia do Norte é reconstrução literária de um episódio obscuro da ditadura militar que jamais foi devidamente esclarecido. Trata-se do massacre da expedição do Padre Giovanni Calleri, enviada pelo Governo para pacificar os temidos Waimiris-Artroaris durante a construção da rodovia BR-174, também conhecida como Manaus-Boa Vista.

Uma tragédia anunciada já que a expedição foi vítima de uma série de imprevistos que comprometeu sua segurança e ainda contou com a falta de apoio das autoridades. Entretanto, esse massacre não passou ileso, foi severamente punido pelas tropas oficiais, culminando com a morte de 2500 indígenas, e as reminiscências dos sobreviventes desse genocídio formam o capítulo mais comovente do livro.

Aliás, Sandra Godinho, a autora, não obedeceu a ordem cronológica dos fatos para estruturar a narrativa, por exemplo, a morte do padre e de seus companheiros é descrita logo no Prólogo e essa escolha é um dos trunfos de Tocaia do Norte, afinal, não basta ter uma boa história, é preciso saber como contá-la.

Quem assume essa função ao longo de quase 300 páginas é um narrador fictício, João De Deus, que já homem feito, relata sua vida desde o nascimento. Em especial, como aos 17 anos, conseguiu participar da tal expedição, escapar da chacina e após um longo percurso na selva, retornar à civilização.

Logo, é impossível enquadrar a narrativa num único gênero. Ela é um romance histórico mas também de formação que resgata um caráter regional que anda meio esquecido num mundo globalizado. Um regionalismo que distingue o vocabulário, molda os costumes e, ao extravasar no texto, traz à tona uma Manaus em transformação, estimulada pela recém-criada Zona Franca, e uma floresta inóspita, assombrada pelo perigo.

Infelizmente, uma floresta que hoje em dia continua enfrentando as mesmas questões polêmicas do passado, como a invasão das terras indígenas e o desenvolvimento baseado no extrativismo, nesse caso, o garimpo. Um assunto complexo que se entrelaça a atuação das missões humanitárias, a evangelização e a conveniente aculturação dos povos nativos.

Como afirma Marcelo Adifa no Prefácio: ?Tocaia do Norte deve ser vista como uma obra literária com inestimável valor, mas também como um registro histórico necessário e contundente, sobretudo nesse momento em que cortinas se fecham e aprisionam sonhos produções artísticas, onde a intelectualidade é mais combatida que a fome em um país que nem de longe lembra o Brasil que gostaríamos ter?.

Enfim, um romance que me conquistou. Sendo mais explícita, ?um prato forte e marcante, doce, às vezes, acre, outras tantas, que a imaginação de Sandra Godinho engendrou em fogo alto e em altas labaredas e ora serve a seus leitores: biscoito fino, beiju de primeira, mingau de banana, para lamber os beiços. A ordem é ler e se lambuzar?. (Mário Baggio, texto de orelha)

?O lugar era divino, como todo lugar sem mando devia ser, livre de tanto rechaço e repugnância. Sem gente retorcendo a boca ao ouvir nosso linguajar caboclo, sem ninguém querendo expulsar de nós a essência. Cada pinguela, catraia ou banzeiro que ondulava o Negro trazia um cheiro de liberdade pelas águas. A cidade flutuante era uma bolha de residências desordenadas na superfície do rio., quebrando a monotonia dos caminhos andantes, habitados por seres que não desistiram de viver, tipos que sabiam escoar pelas águas, tipos como eu que acendia ao avistar o mingauseiro ao final da tarde, deslizando o rio com sua canoa. As moscas eram atraídas pelo aroma, caíam e agonizavam no creme espesso. Não me importava com a imundície. Nem eu nem as crianças que zarelhavam pelos passadiços enquanto os adultos secavam as roupas ou descansavam nas redes armadas nos esteios do de lado de fora. Não se vivia na cidade flutuante por conveniência ? como o governador alegou ?, mas por necessidade, sem ninguém a nos socorrer.? páginas 22, 23 e contra-capa
Ricardo Santos 02/03/2021minha estante
Coloquei na minha lista. E mais uma bela resenha, Leila!


Leila de Carvalho e Gonçalves 02/03/2021minha estante
Grata, abraços!


vicki4you 03/03/2021minha estante
Olá ,
como você está? Meu nome é Srta. Vicki Dickson, vi seu perfil hoje e me interessei por você, quero que envie um e-mail para meu endereço de e-mail privado (vdickson200@gmail.com) porque tenho um assunto importante que quero compartilhar com você




Alexandre Kovacs / Mundo de K 12/10/2020

Sandra Godinho - Tocaia do Norte
Editora Penalux - 318 Páginas - Capa e Diagramação de Guilherme Peres - Lançamento: 2020.

Em seu mais recente lançamento, Sandra Godinho nos apresenta um romance de cunho regionalista com a reconstituição de um período histórico ainda pouco conhecido do grande público: a época da construção da rodovia BR-174, conhecida como Manaus-Boa Vista, durante o regime militar, mais especificamente em 1968, ano do AI-5. Nessa época, infelizmente pouco diferente dos dias atuais, a floresta amazônica era considerada como uma força a ser conquistada em nome dos interesses econômicos de tradição colonial extrativista e os povos indígenas inimigos a serem vencidos a qualquer custo, caso não se mostrassem eficientes as estratégias de evangelização em curso.

O livro tem como base a história real da expedição do padre italiano Giovanni Calleri que foi enviada pelo Governo para pacificação dos índios Waimiri-Atroari durante a construção da estrada, uma expedição que tinha originalmente objetivos humanitários, mas, devido ao não cumprimento das condições acertadas e falta de apoio das autoridades, terminou em tragédia com o massacre de seus integrantes em um episódio que nunca foi totalmente esclarecido, assim como o posterior genocídio de grande parte dos Waimiri-Atroari a partir de helicópteros que sobrevoavam as aldeias espalhando substâncias químicas venenosas e detonando explosivos, atrocidades cometidas em nome do progresso.

O romance é narrado do ponto de vista do protagonista João de Deus, um jovem de dezessete anos que, devido a conflitos internos em seguir a vontade dos pais e se dedicar à vida religiosa, decide se afastar do seminário e acompanhar a expedição do missionário Giácomo Chiarelli. A narrativa dos anos de formação do protagonista em uma região pobre de Manaus é um dos pontos fortes do romance: "Nasci no meio da água e do mal cheiro. E da merda, a cidade flutuante. [...] Cada pinguela, catraia ou banzeiro que ondulava o Negro trazia um cheiro de liberdade pelas águas. A cidade flutuante era uma bolha de residências desordenadas na superfície do rio, quebrando a monotonia dos caminhos andantes, habitados por seres que não desistiam de viver, tipos que sabiam escorrer pelas águas, tipos como eu que se acendia ao avistar o mingauseiro ao final da tarde, deslizando o rio com sua canoa."

"Eu saía cedo, rumo à escola, carregando minha maleta escolar pela mão, mas na verdade, na primeira oportunidade, eu fugia para gazetear pelas escadarias da Matriz, atravessava a praça e me dirigia para os lados dos armazéns até avistar Lívia com sua mãe depois das aulas, ela já botando corpo, pele azeitonada de perdição, cabelo liso de noite que chegava a quebrar o peito de muito homem formado. Eu ainda não era um desses, apenas um pirralho de dez anos que insistia em apressar os passos com pernas curtas, em reparar nas pessoas que iam comprar peixe, nos retalhos de conversa à beira do cais, nos dejetos oleosos deixados pelos navios e pelas catraias que empesteavam a água. [...]" (p. 30)

Neste livro, Sandra Godinho resgata um delicioso regionalismo que tanta falta faz na nossa literatura contemporânea, na qual os autores normalmente se limitam a reproduzir um mundo tristemente globalizado. É bom que se diga que esta visão regional se reveste de um realismo por vezes brutal e de importante denúncia social, um regionalismo em que "Boto não havia para encantar, só as águas negras e as barrentas". Vale a pena conhecer Tocaia do Norte, uma obra importante e recomendada, tanto no que se refere ao valor literário quanto à importância histórica do tema apresentado, afinal, quem sabe conseguimos aprender com o passado.

"Em silêncio e sem que me vissem, vi-me perdido de caminhos, na suposição incontestável de que estava no meio de uma emboscada. Eu, que nem mesmo queria estar ali, acompanhando o padre. Retomei o caminho, de volta ao Igarapé, evitando os galhos retorcidos na altura do rosto, somente o húmus macio derramado no solo a servir de apoio para as pernas que tremiam. Ouvi os gritos das mulheres, estridentes e cortantes. Corri, ainda vislumbrando o rosto de Chiarelli na mente que desmiolava a cada passo." (p.199)

Sobre a autora: Sandra Godinho, nascida a 27/07/1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas de contos. Publicou O Poder da Fé (2016), Olho a Olho com a Medusa (2017), Orelha Lavada, Infância Roubada (2018), agraciado com Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019) e semifinalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (Escritor do Ano 2019), O Verso do Reverso (2019), ganhou o Prêmio de Melhor Conto Regional da Cidade de Manaus de 2019, Segredos e Mentiras (inédito), semifinalista no Prêmio Uirapuru 2019, Terra da Promissão, publicado (2019), e As Três Faces da Sombra, um dos ganhadores do concurso da Editora Fora da Caixa, publicado em 2020.
comentários(0)comente



Valéria Cristina 02/08/2021

Corajoso
A exploração criminosa da Amazônia é retratada aqui por meio do sangue derramado, dos índios trucidados, dos interesses escusos, do regime militar, dos assassinios de missionários e da invasão estrangeira ilegal. Estarrecedor e necessário.
comentários(0)comente



Marina.Duarte 20/03/2024

A história de João de Deus, cuja mãe prometeu que seria padre se sobrevivesse, para infelicidade do filho que teria que pagar a promessa. Durante sua juventude João acaba acompanhando um padre italiano em uma incursão na mata amazônica para convencer os indígenas da região a se mudarem para a passagem da estrada que o governo militar queria construir.
Muito bom o livro. Toca em um assunto que é muito importante até hoje.
comentários(0)comente



4 encontrados | exibindo 1 a 4


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR