Aione 16/03/2022Identidade é o clássico de Nella Larsen, nome importante do movimento Renascimento do Harlem. Publicado originalmente em 1928, chegou ao Brasil pela HarperCollins em 2020, com tradução de Rogerio W. Galindo e posfácio de Ryane Leão.
Irene Redfield e Clare Kendry são mulheres negras de pele clara, que podem se passar por brancas. Amigas na adolescência, tiveram seus caminhos separados após a trágica morte do pai de Clare, que se mudou para morar com as tias. Mais de dez anos depois, se reencontram. Na vida adulta, Irene é casada com um homem negro e é moradora do Harlem, onde celebra suas raízes e se orgulha delas. Clare, por outro lado, é casada com um branco, racista, que não sabe que ela é negra. A partir do reencontro, a vida de ambas é impactada por conta dos desdobramentos que as diferentes percepções sobre a outra despertam em cada uma.
O livro é dividido em três partes — Encontro, Reencontro e Conclusão —, cada uma com quatro capítulos. É uma obra curta, com menos de 200 páginas, mas cujas camadas narrativas fazem dela densa e capciosa, sobretudo pelos aspectos psicológicos presentes. Identidade se desenvolve principalmente na complexidade de suas personagens e nas relações entre elas, mais do que nos eventos externos apresentados. Em terceira pessoa, é narrado pela perspectiva de Irene, cujos pensamentos e emoções aparecem por meio do discurso indireto livre.
Irene e Clare são complexas porque assim são também as questões que as atravessam. As dinâmicas de classe e raça que as envolvem não são de simples compreensão, e Nella Larsen as abordou com maestria. Ao mesmo tempo em que há um fascínio entre as protagonistas, que beira a tensão sexual, há também um espelhamento que desperta repulsa e inveja, identificação e negação. Por um lado, Clare passa a se sentir atraída pela forma de como Irene lida com a própria ancestralidade, o que desperta nela um desejo de se conectar também com essas raízes e a leva a questionar sua identidade, tão imersa na vivência como branca. Por outro, Irene tem sua estabilidade questionada, uma vez que a proximidade com Clare a faz se sentir ameaçada em diferentes aspectos. A autora trabalha tão bem tudo isso que constrói uma tensão crescente, que culmina no fim abrupto, surpreendente e completamente angustiante de Identidade. Contudo, o fim não é uma conclusão; ao contrário, abre margens para inúmeros questionamentos, especialmente por seu caráter dúbio e não elucidado.
Algo que me fez refletir bastante foi a escolha de títulos. Na tradução, Identidade soa como algo mais estabelecido — embora a construção de qualquer identidade não seja concreta, linear nem muito menos estável —, que reflete quem Irene e Clare são — ou almejam ser. No original, Passing traz a ideia da fluidez, do movimento, do mutável, cuja tradução literal não funcionaria tão bem no português. Gosto muito de ambos os títulos, e acredito que, em conjunto, trazem diferentes aspectos da obra, sendo os dois muito pertinentes a ela.
Em linhas gerais, Identidade não foi uma leitura voraz, mas certamente instigante. Fiquei encantada pelo sutil desenvolvimento psicológico das personagens, bem como pela maneira como as tantas críticas sociais são incluídas na narrativa, especialmente em meio a um cenário histórico que, embora não enfatizado, traz um retrato preciso da época e da sociedade estadunidense da década de 1920 — e o quanto revela questões que continuam tão atuais. Uma leitura dolorosa e perturbadora, mas também primorosa e necessária.
Em relação à adaptação disponível na Netflix, o filme é bastante fiel à obra original em termos de enredo e em como os aspectos psicológicos são apresentados. Inclusive, o final consegue manter a ambiguidade do livro mesmo com seu caráter visual, um trunfo de Rebecca Hall, diretora. As atuações de Tessa Thompson e Ruth Negga, além de brilhantes, revelam muito bem as tensões e a atração entre Clare e Irene. Destaque também para o formato 4:3 das imagens, em vez do atual 16:9 (widescreen) que, juntamente com a fotografia em preto e branco, traz o caráter clássico de Identidade. Há também outra camada interpretativa e simbológica dessa escolha. Em primeiro lugar, o formato 4:3 é mais limitado do que o widescreen em termos do que pode ser visto, sugerindo que nem tudo no filme está ao alcance dos olhos. Sobre o aspecto monocromático, para além do paralelo entre preto e branco, a coloração desprovida de outros tons, embora mais simples, torna as imagens menos detalhadas e com nuances menos definidas — exatamente como tudo na história, em que nada é de simples compreensão ou de fácil julgamento.
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