Lucas 05/09/2023
Reflexões se sobrepondo à ficção: o homem que ri é um homem que chora
O Homem que Ri, obra lançada em 1869, é um dos últimos "livros-denúncia" de um escritor que se notabilizou por fazer de seus trabalhos verdadeiros gritos a favor da liberdade, do amor e do combate às mazelas sociais do seu tempo (e que persistem ao longo dos séculos). Trata-se de Victor-Marie Hugo (1802-1885), francês de nascimento e cidadão do mundo por excelência.
Victor Hugo era alguém "multifuncional": além de escritor, era poeta, desenhista, dramaturgo, político e exilado. Estes elementos definem suas obras e dão a elas uma prolixidade pluralizada que não se vê em nenhum outro autor conhecido. Ele sabe o que falar e como falar, com uma propriedade verborrágica sobre todos os temas acima citados. É capaz de dissecar qualquer incongruência que a sua narrativa ficcional se esbarra. A importância de se assinalar isso se destina em especial ao leitor de primeira viagem das suas linhas, pois Hugo reflete, filosofa, disserta, acusa e defende sem se preocupar com a duração destas suas famosas divagações.
Mas é importante também destacar que todas estas divagações se sustentam na sua ficção sempre atraente, na sua capacidade de misturar realismo e crítica social com um romantismo abrangente, ora casto e inocente, ora passional em excesso. Em se tratando de O Homem que Ri, Victor Hugo olha para fora (a Inglaterra) e para o passado (a narrativa se passa entre 1690 e 1705). Sem parecer piegas ou tomar partido do seu país, no que seria a derivação de uma das mais antigas rivalidades pátrias da Europa, o escritor aponta o seu bisturi narrativo para a monarquia inglesa daquele tempo.
Tudo começa com uma denúncia: os comprachicos, rótulo dado a traficantes de crianças que, protegidos por autoridades monárquicas, se apossavam de indivíduos abandonados e os tornavam alegorias circenses. Dentre elas, Victor Hugo narra as desventuras de Gwynplaine, um garoto de nove anos a qual se vê abandonado pelos seus sequestradores numa das muitas ilhas do Canal da Mancha (entre a França e a Inglaterra e onde o autor exilou-se por dois anos) numa noite de neve. No percurso em busca de abrigo, Gwynplaine acaba encontrando uma bebê recém-nascida na neve, abraçada a sua mãe que já estava morta. Todo este arco narrativo, dramático como se pode imaginar, ocupa boa parte das primeiras cem páginas da obra (na linda edição da Martin Claret). Mas tudo muda quando Gwynplaine e a criança encontram Ursus, um andarilho que tinha uma carroça e seu lobo domesticado, Homo.
Um detalhe torna a jornada inicial de Gwynplaine ainda mais cruel: ele fora mutilado e carregava em seu semblante as marcas de toda a conivência das autoridades e insensibilidade dos homens diante do eterno riso que formava o seu rosto. Riso este feito artificialmente, com a lâmina e a mão de um comprachico. Diante de tanta crueldade, Victor Hugo clama por justiça e destila toda a sua capacidade reflexiva para dissecar esta tragédia, seja em termos individuais, nos traumas as quais Gwynplaine carrega consigo ou em termos estruturais, de denúncia e condenação quanto a passividade e hipocrisia de indivíduos mais bem letrados e poderosos financeiramente que achavam graça dessa deformidade.
Treinado para isso, só lhe sobra o caminho de ser o que na época se chamava saltimbanco. Ursus, então, abriga e adota Gwynplaine e Dea (a bebê abandonada) e todos passam a se apresentar com pequenas peças de teatro de forma itinerante até que quinze anos depois, eles resolvem ir a Londres, onde o epicentro da narrativa se desenrola. Com a apresentação de alguns tipos da aristocracia inglesa da época diante da classe econômica mais baixa onde estavam os saltimbancos, tem-se assim um cenário composto de contradições, servindo como terreno fértil para o autor trazer aos holofotes muitas injustiças e mazelas sociais não exclusivas daquela época e daquele país.
Na verdade, tudo na narrativa de Victor Hugo lhe dá munição para reflexão. Um menino mutilado abandonado na neve? Bandidagem alheia, com a complacência de autoridades; um menino com uma bebê no colo batendo nas portas de casas silenciosas? Egoísmo humano; um navio à deriva em um mar bravio? Dramática situação, capaz de conduzir à redenção; um ser mutilado refletindo sobre as desventuras do mundo diante de uma plateia letrada e debochada? Insensibilidade e desdém sobre-humanos; preocupação com o bem-estar da Coroa e ampliação de seus benefícios? Promiscuidade e insensibilidade que sustentam uma enorme hipocrisia; uma moça cega (Dea) apaixonada por alguém deformado fisicamente (Gwynplaine)? Uma das mais lindas faces do amor. O Homem que Ri é um emaranhado disso: ficção provocativa e reflexão contundente surgem continuamente.
Entretanto, este que é o mais característico traço de Victor Hugo aqui se acentua em demasia, no meu entender. Tudo o que ele escreve é válido, especialmente quando se disseca sobre desigualdade social, mas inegavelmente cansa. Em muitos momentos essas reflexões se afastam tanto da ficção que parece estarmos diante de um livro de sociologia ou história. Acredito que O Homem que Ri exagera nessa abordagem reflexiva e oculta a trajetória dos protagonistas ficcionais, a qual parece correr sem muitos atos divisórios e torna a ficção um tanto quanto estática. Esse fato, aliado a um desfecho que não me agradou (agradar não é mesmo que concordar) e que deixou alguns questionamentos sem resposta reforça esse entendimento, de redução da ficção diante das reflexões e filosofias paralelas. Os Miseráveis, por exemplo, é muito mais volumoso, profundo, rico e equilibrado e trouxe bem menos momentos cansativos. Isso tudo é muito particular, entretanto, até porque a história de Jean Valjean, Fantine, Cosette, Marius, Javert, etc., não possui comparativo com nenhuma outra obra da humanidade.
Mas estamos falando de Victor Hugo e até mesmo o material um pouco menos incrível que leva o seu nome ainda é maravilhoso. O Homem que Ri, que serviu de inspiração para o eterno Coringa, personagem das histórias do Batman, é um livro excepcional, que emociona e ensina, apesar do inchaço narrativo. Gwynplaine carrega consigo um fardo que poucos personagens literários conseguiram carregar: o de culpa por pertencer a espécie humana, que em alguns aspectos é a mais animalesca das espécies conhecidas. E Victor Hugo é e sempre será a pessoa mais indicada para falar sobre tamanhas falhas, lapidando-as com um olhar humanista e ferinamente atual.